Sala de cinema, uma vida e nada mais...
Por Di Moretti - Jornalista, professor de roteiros cinematográficos, cineasta e roteirista.
1.º ATO – TESTEMUNHA DE ACUSAÇÃO
Em meados da década de 60, com 5 anos de idade, fui convencido, por minha mãe, a abandonar minha bola de capotão no quintal e ir correndo conhecer uma novidade no bairro, uma sala de cinema. Segundo ela, eu iria ter uma tarde muito divertida e incomum. O cine Júpiter, na Penha, zona leste de São Paulo, estava exibindo “Bambi”, dos estúdios Disney. Entre um saco de pipoca e um puxa-puxa Zorro, a única coisa que me lembro é de chorar copiosamente, abatido pela morte da “mãe do Bambi”. Além da decepção com minha mãe, que me prometera uma tarde feliz, fiquei absolutamente surpreso de como aquele feixe de luz que vinha de um troço grande de metal escuro, chamado projetor, batia naquele pano branco todo esticado, chamado tela, podia ser capaz de mexer tanto comigo a ponto de me fazer cair em lágrimas. Como este negócio esquisito, chamado cinema, podia mexer tanto com uma pessoa a ponto de tirá-la de sua zona de conforto e fazê-la se assustar, rir, chorar, sentir raiva, compaixão, amor... Aquelas imagens projetadas naquele tecido chacoalharam meus sentimentos e minha vida para sempre.
Esta experiência de ir a esta sala escura, quase toda semana, esperando as estreias das sextas-feiras, virou um ritual de passagem, da minha infância e da minha adolescência. Logo coloquei na cabeça que queria fazer essa coisa chamada cinema, que queria fazer as pessoas se emocionarem, tanto quanto eu me emocionei quando a mãe do Bambi foi morta brutalmente por um caçador desalmado.
Ainda não sabia muito bem em que função e nem como iria sobreviver financeiramente com este sonho impreciso. Naquela altura apenas havia descoberto que eu tinha duas paixões na vida, livros e filmes, e que a carreira de roteirista reunia estas duas coisas. E, lá se vão mais de 30 anos de profissão testemunhando esta pequena epifania infantil.
2.º ATO – O PECADO MORA AO LADO
Tanto quanto “Bambi” marcou definitivamente minha
infância, o cinema me formou como homem adulto. Digo, não em detrimento da boa educação
que recebi do Seu Nelson e da Dona Mina, que os filmes me moldaram como ser
humano. Foram as historinhas que meus titios Kubrick, Scorsese, Glauber, Billy,
Kurosawa, Nelson, Coppola, Carlão, Scola... me contavam, em várias salas de
cinema feias, sujas e malvadas.
Como não reconhecer que era também a época da explosão
da minha libido, da minha curiosidade sexual e, de novo, pude contar com a ajuda
do pessoal do cinema para resolver este novo probleminha.
Nos anos 70, me mudei para São Bernardo do Campo, no ABC
paulista, e passei grande parte da minha adolescência em sessões de filmes que já
não eram mais assim tão infantis e ingênuos. Os inocentes personagens da Disney
deram lugar a belas e talentosas atrizes, verdadeiras professoras de qualquer
primeira noite de um homem: Sonia, Sharon, Leila, Susan, Marilyn, Helena,
Sofia, Ornella... Personagens e filmes que testavam o poder do meu império dos
sentidos. Como esquecer a estranha sessão de “Laranja Mecânica”, no cine Hawaí,
em Bernô City, onde por causa da ridícula censura da época, tarjas pretas perseguiam
as partes pudendas da personagem abusada pela gangue de Alex?
Novamente, o cinema se dizia presente no meu destino, tendo aquela conversa intima e fundamental sobre sexo que meu pai nunca teve coragem de ter comigo. Mas, também foi este mesmo pai que me presenteou, no meu aniversário de 14 anos, com uma câmera super 8 Canon e tudo aquilo que até aqui era teoria virou realidade, em despretensiosos curtas metragens. Com esta câmera na mão e muitas ideias na cabeça, comecei a me aventurar do outro lado daquele grande pano branco esticado. Sai da confortável posição de público observador, sentado na poltrona de courvin, e resolvi me aventurar por trás da máquina de escrever que fazia nascer as histórias dos filmes.
3.º ATO – PACTO DE SANGUE
Hoje
em dia, mais velho, mais acomodado e porque não dizer mais preguiçoso, a
experiência de ir ao cinema tem sido cada vez mais rara. Não só pela comodidade
do streaming, mas sim porque ir uma sala de cinema hoje é uma aventura muitas
vezes arriscada e imprevisível. Vivemos tempos de intolerância, celulares
ligados, conversas fiadas e uma total falta de respeito com o outro, sentado ao
seu lado. Tudo aquilo que o cinema me ensinou parece ter se perdido completamente.
Testemunhei
as grandes salas de cinema de São Paulo irem morrendo pouco a pouco: Metrópole,
Comodoro, Majestic, Marrocos, Astor... Felizmente, ainda existem alguns poucos bravos
guerreiros que tentam manter este sonho em pé: Adhemar, Jean Tomas, André...
Heróis da resistência e da persistência que a cada dia são feridos brutalmente pela
especulação imobiliária, pela ganância dos grandes conglomerados de mídia, pela
ausência de uma politica de incentivo ao cinema nacional...
Como disse anteriormente, eu fui criado como ser humano e profissional nestas salas de cinema espalhadas pelas ruas da capital paulista e ver esta paulatina destruição me abala profundamente. Fico pensando nas gerações futuras que não vão ter a oportunidade de tirar um ticket na bilheteria, não vão comprar um Mentex com a baleira, não vão ser guiados a sua poltrona por um simpático lanterninha, não vão tirar sarro na última fileira da sala, não vão se assustar com os labirintos mal iluminados do Stanley Hotel, não compreender o drama de Michael em substituir seu pai, não vão tentar resistir aos atrativos pueris de Lolita, não vão se emocionar com a saga de Dora atrás do pai de Josué...
A experiência de ir ou estar numa sala escura é um verdadeiro pacto de sangue que nós, espectadores, celebramos com o cinema. Doamos duas horas de nosso dia para que esta mágica possa acontecer e mudar nossa vida completamente.
Foto do cine Comodoro Cinerama: Site São Paulo Antiga