Memórias do cinema de rua - Ivo Minkovicius


A primeira e a última sessão de cinema
Por Ivo Minkovicius - Ilustrador, escritor e designer gráfico.

A garoa fina que caia na Tiradentes fez com que ficássemos encolhidos sob a sua sombrinha florida. Assim permanecemos por uns dez minutos até o ônibus elétrico chegar.
– Como você sabe que ônibus a gente tem de pegar?
– Por que estou passando por debaixo da roleta e você não?


Não houve tempo dela responder, pois naquele exato momento ela agarrava a minha blusa de lã para que eu não escapasse pela tangente da curva que o motorista, tal qual Speed Racer em seu Mach 5, fazia em alta velocidade.

Sentei sobre o seu colo.

As janelas eram estranhas, sem ordem, algumas azuis, outras vermelhas, quase não deixavam a gente ver o que se passava lá fora.

O trajeto foi rápido. Descemos na Ipiranga bem na frente do cinema. Uma placa enorme mostrava o fusca.

Usava uma calça vermelha e meu inseparável tênis Conga azul marinho.
– Por que a gente não entra logo?
– Porque a outra sessão ainda não acabou.
– O que é sessão?


Na bomboniere ela comprou uma barra de chocolate branco. Guardei no bolso da calça para comer apenas num momento especial do filme.

Finalmente entramos. A sala era enorme, a tela deveria ser 287 mil vezes maior que a nossa televisão Philips de madeira que tínhamos em casa. Eu não piscava.

Um filme começou antes do filme e era colorido!
– Cadê o fusca?
– Ainda não começou, já, já ele aparece e você vai começar a entender tudo.
– O filme também é colorido?
– É sim.


Quando aquele fusca branco com o número 53 apareceu na tela tive a certeza absoluta de que precisava ter um desses para mim. Era um tipo de cachorro, um amigo. E mais, eu não precisaria dirigir, ele faria isso por mim. De toda forma, eu não dirigia, não era um adulto. Eu não queria ser um adulto e também não precisava ser um. Pra quê? Se ela estava do meu lado, sorrindo e respondendo às minhas infinitas perguntas.

Ilustração : Ivo Minkovicius

– Vamos. Você precisa ir.

Ela não queria. Há meses, talvez anos, ela não ia ao cinema.
– O filme é ótimo, você precisa ir.

Leitora voraz, o que ela gostava era de uma boa história. Do Jorge Amado, foi toda a obra; dos clássicos brasileiros deve ter lido tudo, alguns russos e um monte de livros encadernados de sua estante. Agora, ela não tinha mais paciência para ler.
– Está bem, vamos.

Peguei o carro. Tinha de ser num shopping, local de fácil acesso e que ela não precisasse andar muito.

Era um sábado de outono, quente e lindo.

No caminho tentei falar de amenidades. Sentia o esforço que ela fazia para estar ali. Um tempo difícil.

A sessão começou. De rabo de olho notava a sua expressão atenta. Logo nas primeiras cenas ela sorriu. Algo verdadeiro e infantil que eu não via há anos.

O menino, ator do filme, era uma espécie de “eu mesmo misturado com os meus filhos”, a semelhança era desconcertante a ponto de me deixar confuso.

O filme, poesia pura, fez com que ela e eu fôssemos transportados para um cine Ipiranga dos anos de 1970. Aguardava que um fusca branco com o número 53 surgisse no meio do campo de concentração e arrancasse os dois personagens principais daquela tragédia e que em seu caminho de fuga pegasse a nós dois também. Nos levasse para uma avenida Tiradentes úmida e que eu pudesse ficar com ela sob a sua sombrinha florida indefinidamente.

As luzes se acenderam. Ela tinha, como eu, os olhos marejados e livres. Como um remédio, o cinema a curou por alguns minutos.

A calça vermelha ficou eternamente manchada de branco por causa do chocolate que não comi.

Nunca mais assisti a Se Meu Fusca Falasse e A Vida é Bela.

Feliz dia das mães.

São Paulo (SP) - 08/05/2022



CINEMATECA BRASILEIRA - FOLHETOS DE SALAS

CINEMATECA BRASILEIRA - PERIÓDICOS DE CINEMA

ACESSE O BANCO DE DADOS


BIBLIOGRAFIA DO SITE

PRINCIPAIS FONTES DE PESQUISA

1. Arquivos institucionais e privados

Bibliotecas da Cinemateca Brasileira, FAAP - Fundação Armando Alvares Penteado e Faculdade de Arquitetura e Urbanismo - Mackenzie.

2. Principais publicações

Acervo digital dos jornais Correio de São Paulo, Correio Paulistano, O Estado de S.Paulo e Folha de S.Paulo.

Acervo digital dos periódicos A Cigarra, Cine-Reporter e Cinearte.

Site Arquivo Histórico de São Paulo - Inventário dos Espaços de Sociabilidade Cinematográfica na Cidade de São Paulo: 1895-1929, de José Inácio de Melo Souza.

Periódico Acrópole (1938 a 1971)

Livro Salões, Circos e Cinemas de São Paulo, de Vicente de Paula Araújo - Ed. Perspectiva - 1981

Livro Salas de Cinema em São Paulo, de Inimá Simões - PW/Secretaria Municipal de Cultura/Secretaria de Estado da Cultura - 1990

Site Novo Milênio, de Santos - SP
www.novomilenio.inf.br/santos

FONTES DE IMAGEM

Periódico Acrópole - Fotógrafos: José Moscardi, Leon Liberman, P. C. Scheier e Zanella.

Fotos exclusivas com publicação autorizada no site dos acervos particulares de Joel La Laina Sene, Caio Quintino,
Luiz Carlos Pereira da Silva e Ivany Cury.

PRINCIPAIS COLABORADORES

Luiz Carlos Pereira da Silva e João Luiz Vieira.

OUTRAS FONTES: INDICADAS NAS POSTAGENS.