Memórias do cinema de rua - Carlos Alkmin


O privilégio de um ex-morador da segunda Cinelândia paulistana
Por Carlos Alkmin - Fotógrafo e publicitário. Site: carlosalkmin.com

Quem, como eu, buscava a programação das salas de cinema muito antes da internet comercial, há de se lembrar da seção AUGUSTA, PAULISTA E JARDINS na página de cinema do caderno de cultura dos jornais ou das revistas semanais. As outras seções eram CENTRO e OUTROS BAIRROS. Ao relatar minhas memórias, descobri que essa divisão passou a ser adotada em 1973, quando as salas da região da Avenida Paulista estavam se tornando mais numerosas.

Residi num edifício emblemático bem na esquina da Avenida Paulista com a Brigadeiro Luís Antônio, o Edifício Nações Unidas. Isso foi de 1980 a 2006. Antes mesmo, já morava por perto. Era um privilégio raro para quem ama cinema. Em um raio de apenas 1,5 km do meu edifício, estavam localizadas cerca de 40 salas de cinema de rua, algumas das quais instaladas em galerias comerciais ou pequenos shoppings, antes da dominância dos multiplex naqueles que, de fato, são considerados os shopping centers atuais. 

As salas eram verdadeiros templos da cultura cinematográfica paulistana. Viver ali oferecia-me um luxo que hoje parece impensável: decidir de última hora que filme assistir, sair caminhando de casa, escolher entre diversos estilos e programações e, ao final, voltar a pé para casa, refletindo sobre a experiência. Eventualmente, parando para um café. O cinema não era apenas lazer. Era parte do cotidiano, da geografia íntima da cidade e da alma.

Para contar minha história com os cinemas de rua, vou retroceder alguns anos até minha primeira lembrança, ainda na infância. Se não foi exatamente a primeira vez, pode ter sido a segunda. Até meus 5 anos de idade, eu morava no bairro da Vila Mariana, onde havia poucos cinemas. Minha mãe me levou ao cine Álamo, na Rua São Joaquim, na Liberdade. Eu devia ter uns 4 anos de idade, embora só fosse permitido crianças entrarem no cinema a partir dos 5. O filme? "Roberto Carlos e o Diamante Cor de Rosa", de 1970, no qual o elenco contava com os parceiros da Jovem Guarda, Erasmo “Tremendão” Carlos e Wanderléa. A turma se aventurava por algumas locações no mundo em cenas de ação ligadas a um suposto tesouro na Pedra da Gávea, no Rio de Janeiro. O filme terminava com a canção "É Preciso Saber Viver", um hino de positividade que anos mais tarde foi regravado pelos Titãs. Tudo encantador para uma criança que ainda tinha muito por descobrir. Uma lembrança curiosa que tenho da volta do cinema para casa é que pegamos um ônibus errado. Na época, o embarque era pela porta traseira. Como minha mãe pediu para descermos por trás a fim de pegar a linha correta, o motorista, possivelmente impaciente, ia sair antes de desembarcarmos e o cobrador berrou de seu posto: "tem criaaaança!" E olha que a suspensão dos coletivos costumava ser mais alta, deixando a porta traseira um tanto elevada.

Tendo residido em seguida mais perto do centro, uma das salas às quais meus pais me levavam era o cine Metrópole, na galeria de mesmo nome. Hoje em dia, a galeria voltou à moda e a visitei, notando que o letreiro da fachada da sala de cinema continua intacta, com seu logo clássico. É que, por um tempo, o antigo cine Metrópole passou a ser um espaço para eventos, mas, provavelmente, está inativo. Abriu para pequenos eventos da galeria, um dos quais em janeiro de 2024. Outras salas que conheci no centro foram o Paissandú, o Comodoro e o Cinespacial. O Paissandú eu me lembro que tinha algo de estranho na inclinação, dificultando a visualização da tela.

O tempo avança para o início de minha adolescência, quando começo a frequentar sozinho as salas de cinema, sem a necessidade dos pais ou responsáveis. Já morando na mencionada região da Avenida Paulista, posso detalhar algumas salas e pequenos complexos que marcaram fortemente a época:

- Cines Gazeta, Gazetinha e Gazetão (Avenida Paulista, 900): localizados no prédio da Fundação Cásper Líbero. Como os próprios nomes dizem, nas irreverentes variações do diminutivo ao aumentativo, havia uma relação com a capacidade de lotação das salas, mas também com a posição no prédio. O Gazetinha ficava no subsolo, o Gazeta no térreo e o Gazetão num andar acima. Felizmente parte dessa história não se apagou e a distribuidora Imovision administra o complexo desde o início dos anos 2000, agora denominado Reserva Cultural, com salas de cinema mais modernas, lanchonete e livraria. Tive cartões de fidelidade do Reserva Cultural. Estavam sempre comigo na carteira.



- Cine Gemini, salas 1 e 2 (na Galeria do Edifício Winston Churchill, Av. Paulista). Este cinema foi um exemplo notável da modernização das salas em meados dos anos 1970, com projeção de qualidade e conforto acima da média. A comunicação visual de seus logos e tapetes no hall e no interior das salas era bem da estética da década.




- Cines Bristol e Liberty (no Center 3). Destes eu me lembro de armaduras medievais decorando a entrada. O pequeno shopping tinha uma rampa em formato de caracol bem ao centro, interligando os pisos. Pelo que sei, assumidos pela Playarte, continuaram existindo sob o nome Playarte Bristol, mas encerraram as atividades em 2022.

- Cines Astor e Cinearte (ambos na galeria do Conjunto Nacional). O grandioso Astor fez falta quando fechou. Felizmente, anos depois, seu imóvel abrigou um importante estabelecimento comercial, a megastore da Livraria Cultura, já que a livraria já ocupava outra loja na mesma galeria. Sobre o Astor, veio-me uma lembrança relacionada àqueles versos da letra da canção "Flagra", da Rita Lee. O tal do "escurinho do cinema, chupando drops de anis”. Se teve os drops de anis, que teriam sido da Dulcora, não me lembro, mas quanto ao escurinho... nada de muito ousado não. Foi só uma confusão entre quem colocava o braço no descanso da poltrona, que acabou sendo o início de um namoro. Quanto ao Cinearte, conheci em suas diferentes denominações, cada qual ligada a sucessivos patrocinadores, com marcas comerciais associadas. Nele, assisti a alguns bons filmes das edições da Mostra Internacional de Cinema. O cheirinho da pipoca bem ao lado da bilheteria, situada alguns degraus abaixo do piso da galeria, ainda é marcante. Sei que continua existindo, agora com o nome de cine Marquise. Que bom!



- Cines Biarritz e Paulistano (quase vizinhos, num mesmo quarteirão da Av. Brigadeiro Luiz Antonio): o primeiro teve uma programação comercial normal, mas sei que, em sua fase decadente, passou a exibir filmes pornográficos. Não sei por que ficou na minha memória a exibição do filme "Car Wash", de metade dos anos 1970. Lembro-me do cartaz de divulgação. Aliás, o trabalho de cartazistas de cinema merece um capítulo à parte. Uma característica dos cinemas com a fachada junto à rua ou dentro de galerias e pequenos shoppings eram os cartazes e letreiros com letras-caixa. O cine Paulistano, mais ao fundo de uma galeria ao lado do imóvel em cujo térreo ficava o Biarritz, tinha uma sala confortável, pelo que me lembro. Um filme ao qual assisti naquela boa sala foi “U2: Rattle and Hum”, o documentário/musical de 1988 da banda irlandesa. O entretenimento por ali não se resumia às duas salas de cinema. Acima do Biarritz ficava o tradicional e popular salão de danças "Cartola Club", em cujo letreiro em néon constavam também os dizeres "Grandiosos Bailes". O Biarritz virou bingo nos anos 1990 e, mais recentemente, ali fica um laboratório de análises clínicas.



- CineSesc (na Rua Augusta). Conheci ainda na companhia de meus pais. Sua inovação era a de possuir um recinto, vejam só, onde se podia fumar. Era um bar separado da plateia por um vidro. Era, portanto, um "bar fumoir", tal como divulgado no início. Eu achava bizarro, até porque meu pai teve problemas cardíacos decorrentes do consumo do cigarro. Não durou muito essa permissão de fumar no bar, mas o recinto continua ali, para o consumo de bebida e lanches com mais conforto, sendo um diferencial da sala. O CineSesc continua com sua ótima programação e sempre renovado. Destaco os ciclos de reprises dos melhores filmes, realizados anualmente com os filmes do ano anterior em cartaz.

- Top Cine (no pequeno shopping Top Center). Curti por um bom tempo e suas salas sobreviveram bem, concentrando mais para o final de sua existência, filmes bem selecionados, geralmente em temporadas adicionais depois que haviam saído de cartaz do grande circuito. Era a chance de assistir ao que eu havia perdido, com mais tranquilidade. Lembro-me de ter assistido ali ao filme "A Festa Nunca Termina” (24 Hour Party People).



Há outras salas da região que frequentei e dispensam apresentações, já que são famosas e ainda existem. Temos, por exemplo, o cine BelasArtes, na Rua da Consolação, sempre mantendo seu nome associado à empresa ou entidade fomentadora. Assim também é o atual Espaço Petrobrás de Cinema, na Rua Augusta, que já teve o nome de 3 instituições bancárias, uma tendo adquirido a anterior, a saber: Itaú, que comprou o Unibanco, que comprou o Banco Nacional. E antes de tudo isso foi o cine Majestic.




Um pouco fora da região da Av. Paulista, eu apreciava o cine Lumière, na Rua Joaquim Floriano, no Itaim Bibi. Era também muito conveniente por estar no meio do caminho entre meus locais de trabalho - entre os anos 1990 e início dos anos 2000 - e minha residência. Dava tempo de chegar para sessões como a das 20hs.

Pode-se dizer que os cinemas de rua tinham identidade, curadoria e formavam público, muito além do consumo rápido de hoje. As salas faziam parte do tecido da cidade e da minha própria formação. Nos cinemas de rua do circuito da Avenida Paulista, vivi a magia de assistir a filmes memoráveis em tela grande, sem precisar marcar hora nem enfrentar o que há de desagradável e impessoal nas estruturas dos shoppings. Bastava o impulso e os passos de ir até o cinema para completar o ritual.

Com o passar dos anos, presenciando a desativação das salas que eu frequentava, naturalmente fui buscando opções, eventualmente cedendo aos multiplex. Porém cada sala permanece viva em minha memória como as cenas dos melhores exemplares da sétima arte.

Mesmo com as grandes transformações na exibição cinematográfica em São Paulo, minha relação com o cinema teve um novo capítulo. Em 2008, fui convidado pelo recém-criado ECINE - Escritório de Cinema da Cidade de São Paulo a colaborar, com minhas fotografias, na produção do primeiro catálogo de locações para o audiovisual ambientado na cidade.

Essa iniciativa, que marcou uma nova etapa da relação entre cinema e espaço urbano paulistano, é hoje representada pela São Paulo Film Commission – Spcine.

São Paulo (SP) – 02/07/2025



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BIBLIOGRAFIA DO SITE

PRINCIPAIS FONTES DE PESQUISA

1. Arquivos institucionais e privados

Bibliotecas da Cinemateca Brasileira, FAAP - Fundação Armando Alvares Penteado e Faculdade de Arquitetura e Urbanismo - Mackenzie.

2. Principais publicações

Acervo digital dos jornais Correio de São Paulo, Correio Paulistano, O Estado de S.Paulo e Folha de S.Paulo.

Acervo digital dos periódicos A Cigarra, Cine-Reporter e Cinearte.

Site Arquivo Histórico de São Paulo - Inventário dos Espaços de Sociabilidade Cinematográfica na Cidade de São Paulo: 1895-1929, de José Inácio de Melo Souza.

Periódico Acrópole (1938 a 1971)

Livro Salões, Circos e Cinemas de São Paulo, de Vicente de Paula Araújo - Ed. Perspectiva - 1981

Livro Salas de Cinema em São Paulo, de Inimá Simões - PW/Secretaria Municipal de Cultura/Secretaria de Estado da Cultura - 1990

Site Novo Milênio, de Santos - SP
www.novomilenio.inf.br/santos

FONTES DE IMAGEM

Periódico Acrópole - Fotógrafos: José Moscardi, Leon Liberman, P. C. Scheier e Zanella.

Fotos exclusivas com publicação autorizada no site dos acervos particulares de Joel La Laina Sene, Caio Quintino,
Luiz Carlos Pereira da Silva e Ivany Cury.

PRINCIPAIS COLABORADORES

Luiz Carlos Pereira da Silva e João Luiz Vieira.

OUTRAS FONTES: INDICADAS NAS POSTAGENS.