Quem, como eu, buscava a programação das salas de cinema
muito antes da internet comercial, há de se lembrar da seção AUGUSTA, PAULISTA
E JARDINS na página de cinema do caderno de cultura dos jornais ou das revistas
semanais. As outras seções eram CENTRO e OUTROS BAIRROS. Ao relatar minhas
memórias, descobri que essa divisão passou a ser adotada em 1973, quando as
salas da região da Avenida Paulista estavam se tornando mais numerosas.
Residi num edifício emblemático bem na esquina da Avenida Paulista com a Brigadeiro Luís Antônio, o Edifício Nações Unidas. Isso foi de 1980 a 2006. Antes mesmo, já morava por perto. Era um privilégio raro para quem ama cinema. Em um raio de apenas 1,5 km do meu edifício, estavam localizadas cerca de 40 salas de cinema de rua, algumas das quais instaladas em galerias comerciais ou pequenos shoppings, antes da dominância dos multiplex naqueles que, de fato, são considerados os shopping centers atuais.
As salas eram verdadeiros templos da cultura cinematográfica paulistana. Viver ali oferecia-me um luxo que hoje parece impensável: decidir de última hora que filme assistir, sair caminhando de casa, escolher entre diversos estilos e programações e, ao final, voltar a pé para casa, refletindo sobre a experiência. Eventualmente, parando para um café. O cinema não era apenas lazer. Era parte do cotidiano, da geografia íntima da cidade e da alma.
Para contar minha história com os cinemas de rua, vou
retroceder alguns anos até minha primeira lembrança, ainda na infância. Se não
foi exatamente a primeira vez, pode ter sido a segunda. Até meus 5 anos de
idade, eu morava no bairro da Vila Mariana, onde havia poucos cinemas. Minha
mãe me levou ao cine Álamo, na Rua São Joaquim, na Liberdade. Eu devia
ter uns 4 anos de idade, embora só fosse permitido crianças entrarem no cinema
a partir dos 5. O filme? "Roberto Carlos e o Diamante Cor de Rosa",
de 1970, no qual o elenco contava com os parceiros da Jovem Guarda, Erasmo “Tremendão”
Carlos e Wanderléa. A turma se aventurava por algumas locações no mundo em
cenas de ação ligadas a um suposto tesouro na Pedra da Gávea, no Rio de
Janeiro. O filme terminava com a canção "É Preciso Saber Viver",
um hino de positividade que anos mais tarde foi regravado pelos Titãs. Tudo
encantador para uma criança que ainda tinha muito por descobrir. Uma lembrança
curiosa que tenho da volta do cinema para casa é que pegamos um ônibus errado.
Na época, o embarque era pela porta traseira. Como minha mãe pediu para
descermos por trás a fim de pegar a linha correta, o motorista, possivelmente
impaciente, ia sair antes de desembarcarmos e o cobrador berrou de seu posto: "tem
criaaaança!" E olha que a suspensão dos coletivos costumava ser mais
alta, deixando a porta traseira um tanto elevada.
Tendo residido em seguida mais perto do centro, uma das
salas às quais meus pais me levavam era o cine Metrópole, na galeria de
mesmo nome. Hoje em dia, a galeria voltou à moda e a visitei, notando que o
letreiro da fachada da sala de cinema continua intacta, com seu logo clássico. É
que, por um tempo, o antigo cine Metrópole passou a ser um espaço para
eventos, mas, provavelmente, está inativo. Abriu para pequenos eventos da
galeria, um dos quais em janeiro de 2024. Outras salas que conheci no centro
foram o Paissandú, o Comodoro e o Cinespacial. O Paissandú
eu me lembro que tinha algo de estranho na inclinação, dificultando a
visualização da tela.
O tempo avança para o início de minha adolescência, quando
começo a frequentar sozinho as salas de cinema, sem a necessidade dos pais ou
responsáveis. Já morando na mencionada região da Avenida Paulista, posso
detalhar algumas salas e pequenos complexos que marcaram fortemente a época:
- Cines Gazeta, Gazetinha e Gazetão
(Avenida Paulista, 900): localizados no prédio da Fundação Cásper Líbero. Como
os próprios nomes dizem, nas irreverentes variações do diminutivo ao
aumentativo, havia uma relação com a capacidade de lotação das salas, mas
também com a posição no prédio. O Gazetinha ficava no subsolo, o Gazeta
no térreo e o Gazetão num andar acima. Felizmente parte dessa história
não se apagou e a distribuidora Imovision administra o complexo desde o início
dos anos 2000, agora denominado Reserva Cultural, com salas de cinema
mais modernas, lanchonete e livraria. Tive cartões de fidelidade do Reserva
Cultural. Estavam sempre comigo na carteira.
- Cine Gemini, salas 1 e 2 (na Galeria do Edifício
Winston Churchill, Av. Paulista). Este cinema foi um exemplo notável da
modernização das salas em meados dos anos 1970, com projeção de qualidade e
conforto acima da média. A comunicação visual de seus logos e tapetes no hall e
no interior das salas era bem da estética da década.
- Cines Bristol e Liberty (no Center 3).
Destes eu me lembro de armaduras medievais decorando a entrada. O pequeno
shopping tinha uma rampa em formato de caracol bem ao centro, interligando os
pisos. Pelo que sei, assumidos pela Playarte, continuaram existindo sob o nome Playarte Bristol, mas encerraram as atividades em 2022.
- Cines Astor e Cinearte (ambos na galeria do
Conjunto Nacional). O grandioso Astor fez falta quando fechou.
Felizmente, anos depois, seu imóvel abrigou um importante estabelecimento
comercial, a megastore da Livraria Cultura, já que a livraria já ocupava outra
loja na mesma galeria. Sobre o Astor, veio-me uma lembrança relacionada
àqueles versos da letra da canção "Flagra", da Rita Lee. O tal
do "escurinho do cinema, chupando drops de anis”. Se teve os drops
de anis, que teriam sido da Dulcora, não me lembro, mas quanto ao escurinho...
nada de muito ousado não. Foi só uma confusão entre quem colocava o braço no
descanso da poltrona, que acabou sendo o início de um namoro. Quanto ao Cinearte,
conheci em suas diferentes denominações, cada qual ligada a sucessivos
patrocinadores, com marcas comerciais associadas. Nele, assisti a alguns bons
filmes das edições da Mostra Internacional de Cinema. O cheirinho da pipoca bem
ao lado da bilheteria, situada alguns degraus abaixo do piso da galeria, ainda
é marcante. Sei que continua existindo, agora com o nome de cine Marquise.
Que bom!
- Cines Biarritz e Paulistano (quase vizinhos,
num mesmo quarteirão da Av. Brigadeiro Luiz Antonio): o primeiro teve uma
programação comercial normal, mas sei que, em sua fase decadente, passou a
exibir filmes pornográficos. Não sei por que ficou na minha memória a exibição
do filme "Car Wash", de metade dos anos 1970. Lembro-me do
cartaz de divulgação. Aliás, o trabalho de cartazistas de cinema merece um
capítulo à parte. Uma característica dos cinemas com a fachada junto à rua ou
dentro de galerias e pequenos shoppings eram os cartazes e letreiros com
letras-caixa. O cine Paulistano, mais ao fundo de uma galeria ao lado do
imóvel em cujo térreo ficava o Biarritz, tinha uma sala confortável,
pelo que me lembro. Um filme ao qual assisti naquela boa sala foi “U2:
Rattle and Hum”, o documentário/musical de 1988 da banda irlandesa. O
entretenimento por ali não se resumia às duas salas de cinema. Acima do Biarritz
ficava o tradicional e popular salão de danças "Cartola Club", em
cujo letreiro em néon constavam também os dizeres "Grandiosos
Bailes". O Biarritz virou bingo nos anos 1990 e, mais recentemente,
ali fica um laboratório de análises clínicas.
- CineSesc (na Rua Augusta). Conheci ainda na
companhia de meus pais. Sua inovação era a de possuir um recinto, vejam só,
onde se podia fumar. Era um bar separado da plateia por um vidro. Era,
portanto, um "bar fumoir", tal como divulgado no início. Eu achava
bizarro, até porque meu pai teve problemas cardíacos decorrentes do consumo do
cigarro. Não durou muito essa permissão de fumar no bar, mas o recinto continua
ali, para o consumo de bebida e lanches com mais conforto, sendo um diferencial
da sala. O CineSesc continua com sua ótima programação e sempre
renovado. Destaco os ciclos de reprises dos melhores filmes, realizados
anualmente com os filmes do ano anterior em cartaz.
- Top Cine (no pequeno shopping Top Center). Curti
por um bom tempo e suas salas sobreviveram bem, concentrando mais para o final
de sua existência, filmes bem selecionados, geralmente em temporadas adicionais
depois que haviam saído de cartaz do grande circuito. Era a chance de assistir
ao que eu havia perdido, com mais tranquilidade. Lembro-me de ter assistido ali
ao filme "A Festa Nunca Termina” (24 Hour Party People).
Há outras salas da região que frequentei e dispensam
apresentações, já que são famosas e ainda existem. Temos, por exemplo, o cine BelasArtes, na Rua da Consolação, sempre mantendo seu nome associado à empresa
ou entidade fomentadora. Assim também é o atual Espaço Petrobrás de Cinema,
na Rua Augusta, que já teve o nome de 3 instituições bancárias, uma tendo
adquirido a anterior, a saber: Itaú, que comprou o Unibanco, que comprou o Banco
Nacional. E antes de tudo isso foi o cine Majestic.
Um pouco fora da região da Av. Paulista, eu apreciava o cine
Lumière, na Rua Joaquim Floriano, no Itaim Bibi. Era também muito
conveniente por estar no meio do caminho entre meus locais de trabalho - entre
os anos 1990 e início dos anos 2000 - e minha residência. Dava tempo de chegar
para sessões como a das 20hs.
Pode-se dizer que os cinemas de rua tinham identidade,
curadoria e formavam público, muito além do consumo rápido de hoje. As salas
faziam parte do tecido da cidade e da minha própria formação. Nos cinemas de
rua do circuito da Avenida Paulista, vivi a magia de assistir a filmes
memoráveis em tela grande, sem precisar marcar hora nem enfrentar o que há de
desagradável e impessoal nas estruturas dos shoppings. Bastava o impulso e os
passos de ir até o cinema para completar o ritual.
Com o passar dos anos, presenciando a desativação das salas
que eu frequentava, naturalmente fui buscando opções, eventualmente cedendo aos
multiplex. Porém cada sala permanece viva em minha memória como as cenas dos
melhores exemplares da sétima arte.
Essa iniciativa, que marcou uma nova etapa da relação entre cinema e espaço urbano paulistano, é hoje representada pela São Paulo Film Commission – Spcine.
São Paulo (SP) – 02/07/2025