Memórias do cinema de rua - Eliana Martins


Minhas memórias do cinema de rua

Vivi minha infância em uma época em que não havia shoppings centers. Época em que ir ao cinema, nos fins de semana, era uma glória! Um passeio em que praticamente todas as crianças podiam ir; porque a paróquia do bairro distribuía ingressos para quem não podia pagar.

Nasci e me criei no bairro da Bela Vista, que todo mundo chamava de Bixiga, uma réplica da colônia italiana, na cidade de São Paulo.

Havia três cinemas por lá: o Cine Monark e o Cine Arlequim, na Avenida Brigadeiro Luiz Antonio; onde passavam filmes em sua maioria para adultos e adolescentes. Das minhas incursões a esses cinemas, falarei mais adiante.

A alegria da criançada, no entanto, era o Cine REX. Uma sala muito familiar, que ficava na esquina da Rua Rui Barbosa com Conselheiro Carrão.



Eu comecei a frequentar o Cine Rex, no final dos anos 1950, quando já tinha idade para entender aos filmes, mas, na verdade, ele já existia, desde 1940.

Meus pais contavam que a inauguração do Cine Rex tinha sido um grande marco para a cidade de São Paulo e, muito mais, para o Bixiga; porque sua construção se assemelhava às dos grandes cinemas americanos.

Lembro tanto das tardes de sábado, quando eu me juntava a mais 4 amigos, que moravam na mesma rua que eu, para irmos ao Cine Rex.

Os pais se revezavam para acompanhar as crianças; cada vez era um casal.

Íamos a pé. O cinema era 3 quarteirões apenas distante das nossas casas.

Já na porta do Rex, a festa começava, porque tinha carrinho de pipoca e de bala-puxa; uma bala cor de rosa e comprida, que a gente puxava, puxava e ela parecia não acabar.



Entrando na sala de projeção, logo vinha o Lanterninha. Uma pessoa que, com uma lanterna, ia mostrando para todos onde eram seus lugares; porque os corredores não tinham iluminação embutida, como nos cinemas de hoje.

Sentávamo-nos todos juntos, para podermos dividir a pipoca e as balas-puxa.

As luzes se apagavam, e entrava um jornal chamado Canal 100, que exibia documentários sobre futebol e eventos, no país.

Às vezes, as crianças começavam a assobiar ou a gritar: Começa! Começa! por não aguentarem mais de ansiedade pelo começo do filme.

Finalmente, vinha o tão esperado filme daquele dia: "Sissi,a Imperatriz"; com a Romy Schneider. Mas também já havíamos assistido às "Aventuras de Tarzan", "Jasão e o Velo de Ouro", e outros.

Mas a "Sissi, a Imperatriz" deixou um encantamento em mim, que levou anos!



No entanto, nem tudo eram flores, naquelas tardes de sábado, no cinema. Acontecia de o filme parar na metade. Porque os filmes eram projetados em uma película de celuloide, bem delicada, que rodava de um rolo para outro, do projetor.

Eventualmente, essa película enroscava ou mesmo partia; então, o filme parava.

A criançada vaiava e recomeçava com o: Começa! Começa!

Resolvido o incidente, o filme recomeçava, e a gente batia palmas.

O Cine Rex foi um marco de horas deliciosas, com meus amigos, comendo pipoca e bala-puxa, enquanto minha imaginação se soltava e eu virava irmã da "Sissi, a Imperatriz".

Mas a nossa vida segue um caminho inevitável: a gente cresce.

Cheguei à adolescência, e o amor pelo cinema foi comigo.

O Cine Rex e suas interrupções de projeção ficaram para traz, dando lugar aos cines Monark e Arlequim, que passavam filmes mais juvenis.

As projeções ainda eram com películas de celuloide, mas os cuidados e a especialidade da pessoa que projetava eram bem mais precisos, não acontecendo quase nunca interrupções.

O ingresso para os filmes dessas salas era rigoroso; precisávamos mostrar a carteira de estudante e, conforme a idade de proibição do filme, era pedida também a certidão de nascimento.

Os lanterninhas continuavam, firmes e fortes, na sua função de encaminhar as pessoas aos seus lugares.

O jornal que antecedia o filme também continuava aos cuidados do Canal 100.

Eventualmente, quando o filme era dublado, antes da exibição, ouvia-se uma voz em off, que dizia: Versão brasileira, Herbert Richers, enquanto aparecia o logotipo da Twenty Century Fox, por exemplo.

E foi nas sessões de cinema do Monark e do Arlequim, que assisti a alguns filmes memoráveis como: "Ao Mestre com Carinho", com o incrível ator Sidney Poitier; "Ben Hur", com Charlton Heston, que era tão longo a ponto de ter um intervalo de 15 minutos, quando o povo saía da sala para ir ao banheiro, comprar um salgado etc.

Não posso deixar de citar "Psicose", com o Anthony Perkins, e sua famosa cena da moça tomando banho e sendo esfaqueada. Era uma cena horrorosa, mas minhas amigas e eu assistimos ao filme mais de uma vez, só para ver aquele horror, de novo.

Como os anos de adolescência são longos, chego agora no momento de curtir o Cine Astor, que ficava dentro do Conjunto Nacional, na Avenida Paulista.



Nessa época, eu tinha conhecido meu primeiro namorado. Então, as incursões ao cinema tinham dois propósitos: assistir ao filme e dar uns beijinhos no namorado. Como disse Rita Lee: “No escurinho do cinema, chupando dropes de Aniz...”

Após a sessão de cinema, no Astor, a moçada descia a Rua Augusta e se juntava na lanchonete Frevinho, onde ficávamos comentando sobre o filme e as impressões que ele havia deixado em cada um de nós.

Foi nessa época também que surgiram as salas de cinema ao ar livre; os Cine Drive-In; onde se assistia ao filme de dentro do carro.

Pagava-se apenas a entrada do carro, não importando quantas pessoas estivessem dentro dele. Havia um espaço imenso para os carros estacionarem, em frente a uma tela gigante, onde se projetava o filme.

No espaço do Cine Drive-In havia sempre uma lanchonete. A garçonete vinha, a gente fazia o pedido, e ela voltava com uma bandeja, que encaixava nos vidros das janelas dos carros.

Era um passeio bem diferente, mas, quando começava a chover, no meio do filme, era um tal de fechar as janelas dos carros, derrubar as bandejas e, eventualmente, ter que interromper a sessão.

Mesmo assim, era bom!

Enfim, vivi uma época áurea dos cinemas de rua, quando ainda não existiam os shoppings centers, com seus preços altos e nem sempre acessíveis a todos.

Vivi um tempo em que os cinemas de rua aproximavam as pessoas, representando sua forma de ser, viver e conviver. De lá, eu trouxe o aprendizado de transmitir minhas vivências e memórias, como estou fazendo agora.

Oxalá possamos alcançar novamente um tempo em que a cultura trazida pelo cinema possa voltar a ser compreendida como um patrimônio de todas as pessoas!


Eliana Martins Autora de livros infantis e juvenis, com mais de noventa e cinco livros, publicados por várias editoras. Roteirista, dramaturga. Arte Educadora. 

São Paulo, verão de 2025


As fotos do Cine Rex são da revista Acrópole, publicação especializada em Arquitetura, editada em São Paulo entre 1938 e 1971.

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BIBLIOGRAFIA DO SITE

PRINCIPAIS FONTES DE PESQUISA

1. Arquivos institucionais e privados

Bibliotecas da Cinemateca Brasileira, FAAP - Fundação Armando Alvares Penteado e Faculdade de Arquitetura e Urbanismo - Mackenzie.

2. Principais publicações

Acervo digital dos jornais Correio de São Paulo, Correio Paulistano, O Estado de S.Paulo e Folha de S.Paulo.

Acervo digital dos periódicos A Cigarra, Cine-Reporter e Cinearte.

Site Arquivo Histórico de São Paulo - Inventário dos Espaços de Sociabilidade Cinematográfica na Cidade de São Paulo: 1895-1929, de José Inácio de Melo Souza.

Periódico Acrópole (1938 a 1971)

Livro Salões, Circos e Cinemas de São Paulo, de Vicente de Paula Araújo - Ed. Perspectiva - 1981

Livro Salas de Cinema em São Paulo, de Inimá Simões - PW/Secretaria Municipal de Cultura/Secretaria de Estado da Cultura - 1990

Site Novo Milênio, de Santos - SP
www.novomilenio.inf.br/santos

FONTES DE IMAGEM

Periódico Acrópole - Fotógrafos: José Moscardi, Leon Liberman, P. C. Scheier e Zanella.

Fotos exclusivas com publicação autorizada no site dos acervos particulares de Joel La Laina Sene, Caio Quintino,
Luiz Carlos Pereira da Silva e Ivany Cury.

PRINCIPAIS COLABORADORES

Luiz Carlos Pereira da Silva e João Luiz Vieira.

OUTRAS FONTES: INDICADAS NAS POSTAGENS.