Memórias do cinema de rua - Elisa S. Martins


TEXTO COMEMORATIVO DOS DOIS MILHÕES DE VISUALIZAÇÕES DOS BLOGS SALAS DE CINEMA DE SÃO PAULO.
13/02/2025, dia em que recebi esse lindo texto da Elisa Silveira Martins, os blogs marcavam 2.006.592 visualizações!

Busca e saudade: a sala de cinema que não conheci

Minha história com as salas de cinema é um amor impossível. A primeira sala de cinema que conheci foi uma das três salas do Cine Araújo, instalado no Shopping Plaza Itu. Ir ao cinema, talvez passeio corriqueiro para os moradores da Capital, significava uma verdadeira odisséia para uma mãe e um filha vindas de uma chácara da área rural de Cabreúva (SP). Trinta quilômetros me separaram a vida inteira da sala de cinema mais próxima. Décadas atrás, dependendo exclusivamente do transporte público, sem celular ou acesso à internet, minha mãe fez tudo o que pôde para, ao menos duas vezes no ano, me levar ao cinema. E essa empreitada era muito mais do que apenas um passeio... O 'dia de ir ao cinema' era longo e era coisa séria: começava logo cedo, para pegar o primeiro dos dois ônibus com que atravessaríamos a ponte que separa Cabreúva e Itu (SP). E depois, precisávamos esperar o ônibus de volta que só passava no fim da tarde. Chegávamos em casa perto do escurecer.




Eram seis meses de espera para ter cerca de 120 minutos de emoção. Eu não conhecia outra relação possível com salas de cinema. A esporadicidade tornava o cinema um local de rito, quase sagrado. As histórias que eu via na tela me faziam imaginar mundos impossíveis, mas não um mundo em que, andando por uma rua de minha cidade, eu topasse com um cinema. E essa não é uma história apenas minha, como vim a descobrir. Segundo dados entre 2011 e 2020, apenas 5,1% das cidades brasileiras possuem uma sala de cinema. Para poder apreciar um filme como o filme deve ser visto, cabreuvanos precisam obrigatoriamente ir para um dos shoppings das cidades vizinhas. Assim, minha dança com as salas de cinema se tornou uma verdadeira investigação:  à medida que os temas de memória e preservação patrimonial cruzavam meu caminho na universidade, eu alinhei minhas experiências - ou a triste ausência delas - com minhas pesquisas.

Por isso, quando ingressei na USP e me mudei para São Paulo, passei a frequentar os cinemas semanalmente, em êxtase. Minhas idas frequentes aos cines Marquise, Belas Artes, CineSesc, Cinemateca, me foram tão ou mais importantes do que as próprias aulas. Na verdade, se pude lidar com a saudade e a solidão, é porque um dia, nas primeiras semanas, encontrei o CINUSP, sala de cinema que fica dentro da própria universidade. A sala já estava escura quando cheguei, estava nos avisos pré-sessão. O filme foi "Mad Max: Estrada da Fúria". Pela primeira vez na vida não vi um lançamento no cinema, mas uma obra selecionada, e para compor a mostra “Para Gostar de Cinema”. Após os créditos subirem, algumas pessoas o aplaudiram de pé. Realmente foi para gostar de cinema.


Mas a surpresa não foi descobrir com que facilidade se podia ir ao cinema na 'cidade grande', e sim, ter conhecido um tal
Cine São José, cinema de rua que Cabreúva teve entre os anos 50 e 60. Segundo o memorialista Waldemar Camargo em seu livro “Cabreúva: Entre Histórias e Memórias”, o cinema foi mantido nos anos 50 por Mansueto Mesquita Togni e nos anos 60 por Benedito Rosa. O cinema ficava na Praça Comendador Martins e tinha também um bar. Assentos especiais eram reservados para as autoridades — prefeito e delegado — e suas respectivas esposas. Dentre os filmes exibidos, achavam-se Tarzan e os filmes do Mazzaropi. Antes disso ainda, filmes eram exibidos na igreja matriz Nossa Senhora da Piedade. Ou seja, se um viajante do tempo, vindo de séculos à frente do nosso, decidisse conhecer uma sala de cinema em Cabreúva, precisaria vir para os anos 50 ou 60. Depois disso, apenas se frustraria. Em Itu, destino de muitos conterrâneos, havia o Cine Sabará e o Cine Marrocos, com melhor qualidade de som e imagem — em Cabreúva somente eram exibidos filmes em preto e branco. Quem me contou sobre as salas de Itu é o escritor Otoni Rodrigues da Silveira, um verdadeiro guardião da história cabreuvana e amigo meu, em seu livro “Rabiscos Através dos Tempos”. Os cinemas de Itu, como o Cine São José, não existem mais.

Em suma, nas últimas décadas do século XX ocorreu um declínio dos cinemas de rua em São Paulo, ocasionando um déficit cultural terrível, especialmente nas cidades do interior. Isso me afetou muito, pessoalmente. Quando criança, me lembro de ser uma das únicas crianças que já haviam ido à uma sala de cinema. Era um passeio extremamente luxuoso. Me lembro de uma única exibição de filme na minha cidade, em uma tela instalada na rua, na rua estreita que fica entre a praça e o mercado no bairro Bananal. Era o filme 2 Filhos de Francisco, de 2005, dirigido por Breno Silveira. Creio que foi muito marcante pra mim, pois eu era muito nova quando isso aconteceu. A escolha do filme me parece interessante, quando penso hoje, parece seguir a mesma lógica da popularidade dos filmes do Mazzaropi: pela identificação, as pessoas assistirão. Atualmente, há na cidade uma pequena sala dedicada à exibição de filmes ao lado da biblioteca da “estação cultural” no bairro do Jacaré. Ainda assim, é inacessível para boa parte dos moradores, pois fica localizado na zona comercial, afastada dos bairros antigos.

Minha história de encontros e desencontros com as salas de cinema não acaba aqui. Agora, eu descobri que essa é a história de muitos. A sala de cinema que não existe mais é repleta de memórias. Sinto falta dela, e dos filmes que nela eu nunca verei. Ela é um espectro, ela acompanha cada um em suas odisseias. A odisseia é o retorno para a casa, e no absurdo de minhas elucubrações, visualizo o dia em que cada sala que desapareceu retomará o seu lugar.

Elisa Silveira Martins é estudante de Letras (inglês/português) na USP, redatora e pesquisadora.

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BIBLIOGRAFIA DO SITE

PRINCIPAIS FONTES DE PESQUISA

1. Arquivos institucionais e privados

Bibliotecas da Cinemateca Brasileira, FAAP - Fundação Armando Alvares Penteado e Faculdade de Arquitetura e Urbanismo - Mackenzie.

2. Principais publicações

Acervo digital dos jornais Correio de São Paulo, Correio Paulistano, O Estado de S.Paulo e Folha de S.Paulo.

Acervo digital dos periódicos A Cigarra, Cine-Reporter e Cinearte.

Site Arquivo Histórico de São Paulo - Inventário dos Espaços de Sociabilidade Cinematográfica na Cidade de São Paulo: 1895-1929, de José Inácio de Melo Souza.

Periódico Acrópole (1938 a 1971)

Livro Salões, Circos e Cinemas de São Paulo, de Vicente de Paula Araújo - Ed. Perspectiva - 1981

Livro Salas de Cinema em São Paulo, de Inimá Simões - PW/Secretaria Municipal de Cultura/Secretaria de Estado da Cultura - 1990

Site Novo Milênio, de Santos - SP
www.novomilenio.inf.br/santos

FONTES DE IMAGEM

Periódico Acrópole - Fotógrafos: José Moscardi, Leon Liberman, P. C. Scheier e Zanella.

Fotos exclusivas com publicação autorizada no site dos acervos particulares de Joel La Laina Sene, Caio Quintino,
Luiz Carlos Pereira da Silva e Ivany Cury.

PRINCIPAIS COLABORADORES

Luiz Carlos Pereira da Silva e João Luiz Vieira.

OUTRAS FONTES: INDICADAS NAS POSTAGENS.