Memórias do cinema de rua - Sylvia Palma


O cinema, o cineclube e a vida
Por Sylvia Palma - Autora Roteirista, diretora e documentarista.

Quando pisei num cinema pela primeira vez não sabia quem era Spielberg ou Fellini e muito menos Orson Welles. Quando pisei pela primeira vez num cinema era antes das dez da manhã de um domingo, numa sessão de matinê do Nosso Cinema - era esse o nome escrito em preto no luminoso branco da porta de entrada.


Não sei quem me levou, se meus pais ou meus irmãos, mas passamos pela bilheteria, entregamos os bilhetes para o seu Totó, e nos dirigimos para a bomboniere para comprar balas Japonesas, drops Dulcora e, se desse o dinheiro, uma caixinha de Mentex.

Eu aguardava retorcendo o pescoço para o bebedouro que ficava na subida das escadas para o Pullman. Tinha a torneira infantil e a de adultos. Meu desejo era beber a água geladinha que saía da máquina, a única naquela época em Lorena, cidade do interior de São Paulo com 60 mil habitantes.

Uma algazarra de crianças menores de dez anos se formava na entrada, umas pulavam, outras corriam, tinha as que gritavam, todas esperando as portas se abrirem para passar pelas pesadas cortinas de veludo marinho e correr para pegar a primeira fileira ou a do meio, que era a mais espaçosa de todas.

Eu preferia as poltronas das quinta ou sexta fileiras, davam para ver melhor a imagem. Por isso, tinha tempo de passar no banheiro feminino, fazer um xixi sem vontade só para ouvir a conversa fiada das pessoas ou dos meninos no banheiro ao lado.

Esse ritual era sagrado, mas não mais sagrado do que me dispor na fofa cadeira de madeira com estofado vermelho e tacheado, balançar as perninhas que ainda não tocavam o chão e esperar a segunda cortina de veludo se abrir revelando a imensa tela em minha frente.

Quando as luzes se apagavam e o feixe de luz se projetava do fundo e do alto para a frente da tela, um certo temor tomava minha alma. Era como se algo mágico estivesse por acontecer diante de meus olhos. Algo que se revelaria tão inédito e impressionante, tão revelador, que nada mais poderia me deter no meu pequeno e restrito mundo real. Seria rapidamente capturada para um outro universo, onírico, cheio de imagens e sons que entrariam pelo meu sistema sensório motor e me levariam para longe de tudo e todos.


Enquanto outras crianças se distraiam e perdiam logo a vontade de prestar a atenção no filme, corriam pelas laterais e mesmo na frente das telas, porque minúsculas não atrapalhavam em nada a visão dos demais, eu ficava paralisada olhando penetrantemente cada fotograma, cada adensamento da narrativa, me deixando sorver pelo feixe de que se projetava granulando a luz. Às vezes, olhava para trás para me certificar se a janelinha do projetor estava mesmo lá, se o feixe mágico não seria interrompido pelos alaridos das crianças ou por qualquer outra situação inesperada.

Ir ao cinema aos domingos ou durante a semana com meus pais - e com eles a gente comprava pipoca e mais balas e podíamos nos sentar no Pullman, o balcão do segundo andar, lugar mais luxuoso e reservado e que tinha até uma pequena frisa - era uma das coisas que me fazia sentir especial nesta vida.

Lembro dos filmes da Disney, como Mogli, o Menino Lobo e A Bela Adormecida, dos filmes italianos românticos como Dio Como Ti Amo! e das comédias do Mazzaropi, que faziam fila na porta do cinema de tanto público.

Conforme fui crescendo, fui somando novos horários às minhas sessões de cinema. Sessão das três da tarde de domingo passou a ser sagrada também. E das sete da noite.

Os dois cinemas da cidade pertenciam a família Marotta. O cine Rex era mais popular, por ser mais barato, e tinha sessões de cinema proibidas para menores e até para maiores, dependendo da religião da família.


Os filmes foram chegando à cidade e com eles meu interesse foi crescendo. Me recordo de ter visto bons filmes naquelas telas gigantes, mas poucos filmes nacionais. Uma vez, fomos eu, minha mãe e minha irmã mais velha, ver uma película nacional. Devia ter uns 9 anos, minha irmã uns 12 e minha mãe devia ter mais que 40. Era um dia de semana. Não sei por que minha mãe decidiu romper a rotina assim, levando-nos extemporaneamente ao cinema. Muito provavelmente algum dissabor ou vontade de fugir para um lugar protegido. O cinema serve para isso também. Pelo menos, foi o que minha imaginação supôs naquela ocasião.

Lembro que fiquei muito interessada na história do filme, em toda a representação, as imagens mais cruas e realistas, os diálogos em português coloquial, até que lá pelas tantas uma mulher ficou nua na praia e a câmera começou rodar em torno dela, e mais adiante ela beijou um homem, e isso foi num crescente até que minha mãe, indignada, nos arrancou da sala de exibição, aos berros, reclamando da cena, da nudez da protagonista, da exposição das imagens, me puxando pelo braço, enquanto eu me retorcia para ver o restinho de imagem, implorando a ela para ficarmos mais um pouco... Me pareceu uma heresia sair do filme sem completá-lo. Na minha ingenuidade, nem estava espantada com a cena, chocava-me mais o comportamento de minha mãe escandalosa do que o filme em si.

Passei anos tentando encontrar esse filme, nunca consegui. Acredito que tenha sido Os Cafajestes, do Ruy Guerra, com Norma Bengel, o primeiro nu frontal do cinema nacional. Mas, não tenho certeza, não dá para ter.

Quando comecei a ter gosto pelos livros, também arrastei essa predileção pelo jornal, pela parte de cultura apenas, o resto não me interessava. E fui acompanhando os lançamentos dos filmes e as histórias que eles traziam para o público.

Nessa época eu já era adicta das séries de tv americana que, diga-se de passagem, eram muito criativas. Perdidos no Espaço, Viagem ao Fundo do Mar, Túnel do Tempo, A Feiticeira, Jennie é Um Gênio, Família Monstro e tantas outras. Foi quando alguém do meu colégio me falou do Cineclube. Nunca tinha ouvido falar.

Parecia que haviam me dado uma varinha de condão: ver todos os filmes que lia nos jornais. Imediatamente passei a frequentar o Cineclube da cidade. Não sabia quem organizava e ou quem promovia. Hoje eu sei que era a professora Olga, que hoje está no meu altar dos santos. Naquela época, sabia apenas que era das freiras, meu colégio era de freira, estava tudo certo. Lá ia eu assistir ao maravilhoso mundo do Bergman, do Polanski, só para citar dois dos grandes que me marcaram. Não sabia da importância desses diretores na época, só me interessavam os títulos e as obras em si. Gritos e Sussurros. Pode haver título mais instigante? E quando assisti ao filme, a avalanche de sensações, sentimentos, de conexões que se faziam dentro de mim era de uma grandeza infinita. Não tinha, óbvio, maturidade emocional para entender um filme daqueles, mas eles pregavam meus olhos nas telas de tal forma que passava dias pensando nas cenas, nas cores, nos sons, nos personagens. Liv Ullman se tonou para mim um ícone indecifrável. Que rosto tinha aquela atriz. Quanta expressão contida naqueles olhos. Como não a amar? No dia em que assisti O Inquilino, do Palanski, não dormi por uma semana de medo. Que tipo de filme provoca isso na gente, me questionava. Poderia citar um monte de outros filmes, mas seria estender a atenção em detalhes que não são tão importantes quanto o que vou contar agora. O que o cinema fez comigo. Me tornou uma subversiva!

Frequentando assiduamente as sessões de cinema, me pus a ficar obsessiva com os filmes. E, naquela época, estava totalmente interessada em Woody Allen. Por favor, me permitam separar o criador da criatura, pois bem sei a polêmica que este nome traz à tona e sou uma das que condena o comportamento do homem, mas admira a obra do artista. Isto dito, sigamos. Fiquei louca quando soube que haveria uma Mostra de Cinema Woody Allen em São Paulo, capital. Mas, como iria até lá com 14 anos de idade? E como meus pais deixariam que isso fosse possível? Nunca!

Pois bem, comecei a planejar meu ardil. A primeira coisa que fiz foi me aproximar de uma amiga da escola cujos pais eram novos na cidade - sim, minha mãe conhecia Deus e o mundo, além de ser muito conhecida também, pois sendo comerciante e muito comunicativa, as notícias corriam até ela. Outra estratégia foi guardar a mesada do lanche para conseguir comprar a passagem. A terceira foi perguntar para uma outra amiga que havia se mudado para São Paulo se algum dia poderia ir visitá-la, o que ela prontamente concordou, porque sempre tive talento para cultivar amizades e sabia me divertir com os amigos. Última etapa: convencer minha mãe a me deixar a passar o final de semana na casa dessa minha amiga nova.

Como nunca tinha feito este pedido antes e como minha amiga confirmou para minha mãe que eu passaria com ela esses dias - pacto de sangue: mentir para os pais para o nosso bem! -, minha mãe concordou.

E lá fui eu rumo à rodoviária da cidade, bem cedinho! Naquela época era só ir ao guichê e comprar passagem. Ninguém perguntava idade, nada! Não tinha que ter nenhum responsável junto. Comprei as passagens, sentei-me num dos últimos bancos e para minha surpresa, ao meu lado estava o Paulo, um conhecido meu. Ele era bem mais velho e já era casado. Eu tinha 14 anos, como já disse. Espantado, Paulo me perguntou o que estava fazendo sozinha rumo à capital. Vou ver o Festival Woody Allen, respondi objetivamente. Mais espantado ainda ele me perguntou: mas assim, sozinha, vai ficar aonde?! Na casa da Zu, arrematei convicta!


O silêncio tomou o ônibus. Percebi o semblante do Paulo fechar-se, a sobrancelha contrair e a voz gaguejar: Mas, a Zu não está em São Paulo, está viajando, está fora do país desde a semana passada, você não sabia? Não ligou para ela?

Eu só tinha o endereço. E de fato, não liguei. Não era tempos de celulares e tablets, nem os orelhões eram comuns. Tinha-se que procurar um para ligar. Não sei como achei, inclusive, que poderia chegar até a casa da Zu sem conhecer São Paulo. Nunca tinha ido à capital.

Talvez só aconteça na minha vida, mas acredito piamente que anjos são enviados de todos os cantos dos céus para me salvarem das roubadas em que me meto. Naquele momento não senti uma fresta de medo ou aflição. Nenhum abalo. Tranquila, olhei para a janela e apreciei a paisagem. O Paulo riu. Menina! O que eu faço com você? Seus pais sabem que você está aqui? Não, claro que não. E nem podem saber, tergiversei. E continuei meu passeio pelas árvores perfiladas correndo pelas janelas.

Paulo, esse nobre homem que nunca mais vi na vida, riu outra vez e me disse que tentaria resolver quando chegássemos à São Paulo. E assim, fizemos uma viagem tranquila, eu falando de Heman Hesse, Kalil Gibran, Aldous Huxley, ele me falando dos produtos naturais que começava a vender, pois era um dos pioneiros desse mercado. Falamos da Rose, sua esposa, seus filhos, da vida, dos discos que gostávamos e rapidinho estávamos na gigantesca São Paulo.

E o que Paulo fez comigo? Me levou até a casa de um casal de amigos de Lorena. Pardal e Tânia viviam com seus dois filhos ainda pequenos. Paulo explicou a situação a eles, que pouco me conheciam, conheciam minha mãe e meu irmão. Os três riram de mim, da minha petulância, acho que até gostaram disso. Eles me aceitaram em sua casa, me colocaram no quarto de empregada e me prometam levar a uma sessão do festival de Woody Allen.

Foi um final de semana formidável. Pardal me levou a um monte de lugares, à casa de seus amigos, todos mais velhos, todos me adotaram de cara - afinal, quem foge de casa para ir ao cinema? A única decepção ficou por conta do tamanho da sala de exibição, achei que era um cinema enorme, como o da minha cidade, mas não, era minúscula, salinha mesmo, como existe até hoje. Isso eu não pude perdoar. Toda minha aristocracia cinematográfica foi colocada no bueiro quando tive que me espremer proletariamente entre as pessoas cabeçudas à minha frente para assistir A Última Noite de Boris Grushenko.


Tudo isso para dizer que o cinema está em mim como eu estou para o cinema. Nunca nos separamos. Nosso casamento é um longa-metragem cheio de aventuras, romance, suspense, mas sempre com final feliz. E essa é a minha homenagem ao Cineclube da minha cidade (e ao cinema) que tanta alegria me deu, temperou meus dias com risos e lágrimas, sonhos e esperanças. Minha gratidão eterna.

“O cinema é um modo divino de contar a vida.” - Federico Fellini

“Todas as vezes que vou ao cinema é mágico, e não interessa que filme é que é.” - Steven Spielberg

“O cinema é o modo mais direto de entrar em competição com Deus.” - Federico Fellini

“O cinema não tem fronteiras nem limites. É um fluxo constante de sonho.” - Orson Welles

Rio de Janeiro (RJ) – 28/03/2025

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BIBLIOGRAFIA DO SITE

PRINCIPAIS FONTES DE PESQUISA

1. Arquivos institucionais e privados

Bibliotecas da Cinemateca Brasileira, FAAP - Fundação Armando Alvares Penteado e Faculdade de Arquitetura e Urbanismo - Mackenzie.

2. Principais publicações

Acervo digital dos jornais Correio de São Paulo, Correio Paulistano, O Estado de S.Paulo e Folha de S.Paulo.

Acervo digital dos periódicos A Cigarra, Cine-Reporter e Cinearte.

Site Arquivo Histórico de São Paulo - Inventário dos Espaços de Sociabilidade Cinematográfica na Cidade de São Paulo: 1895-1929, de José Inácio de Melo Souza.

Periódico Acrópole (1938 a 1971)

Livro Salões, Circos e Cinemas de São Paulo, de Vicente de Paula Araújo - Ed. Perspectiva - 1981

Livro Salas de Cinema em São Paulo, de Inimá Simões - PW/Secretaria Municipal de Cultura/Secretaria de Estado da Cultura - 1990

Site Novo Milênio, de Santos - SP
www.novomilenio.inf.br/santos

FONTES DE IMAGEM

Periódico Acrópole - Fotógrafos: José Moscardi, Leon Liberman, P. C. Scheier e Zanella.

Fotos exclusivas com publicação autorizada no site dos acervos particulares de Joel La Laina Sene, Caio Quintino,
Luiz Carlos Pereira da Silva e Ivany Cury.

PRINCIPAIS COLABORADORES

Luiz Carlos Pereira da Silva e João Luiz Vieira.

OUTRAS FONTES: INDICADAS NAS POSTAGENS.