Memórias do cinema de rua - Dimas Oliveira Junior


No escurinho do cine Marachá
Por Dimas Oliveira Junior - Cineasta, documentarista, jornalista e ator brasileiro.

Rua Augusta, início dos anos 70. Uma São Paulo ainda enevoada por fumaça de cigarro e repressão, mas que já deixava escapar seus primeiros sopros de liberdade pelas frestas das portas de cinema. E ali estava ele: o lendário cine Marachá. Para os olhos castos de um jovem estudante marista do Colégio Nossa Senhora do Carmo, aquele cinema era praticamente Sodoma com poltronas numeradas.




Se em 1969, levei três dias de suspensão só por estar lendo inocentemente a matéria sobre a morte de Judy Garland na revista Grande Hotel (a mais pura entre as impuras), o que seria de mim se me pegassem no escurinho do Marachá? Expulsão? Fogueira? Talvez até guilhotina, direto no pátio do colégio, ao som de “Ave Maria”.

Mas o chamado foi mais forte. Li no jornal que iriam exibir "O Águia", com Rudolph Valentino. Meu ídolo absoluto. Mesmo sem nunca o ter ouvido falar uma palavra - só o conhecia por fotografias, sorrisos eternizados em sépia. Aquela sessão era um encontro marcado com o impossível. E ninguém poderia saber. Nem minha sombra.

Entrei com passos furtivos e alma trêmula. O público era… diferente. Gente mais velha, com olhares que eu não entendia, mas respeitava. A sala escura parecia um confessionário invertido. Sentei sozinho, longe de todos, coração acelerado - pelo medo e pela excitação do proibido.

Eu, que só conhecia os épicos bíblicos do cine Comodoro, sempre na companhia vigilante dos meus pais, agora me lançava numa travessia clandestina e libertadora. Quando as luzes se apagaram e Valentino apareceu, o tempo parou. Ele não falava. Mas dizia tudo. Cada olhar seu me atravessava. Era como se ele estivesse ali só pra mim.

E Vilma Banky, a mocinha do filme? Ah, como eu a odiava. Olhava pra Valentino como se quisesse roubá-lo de mim. Mal sabia ela que eu, ali, escondido entre as poltronas do Marachá, já era dele. Aquele filme me despiu de medos. Me vi. Me entendi. Me assumi - ao menos pra mim mesmo.

Saí dali diferente. Mais inteiro. Mais dono de mim. E claro: virei freguês de caderneta do cine Marachá. Levei minha paixão por Valentino vida afora. E até hoje, se fecho os olhos, ainda sinto o cheiro do carpete surrado, o som abafado da película rodando… e o amor, aquele primeiro amor - impossível, platônico e transformador.

Saudades, cine Marachá. Você me mostrou mais do que filmes. Você me mostrou quem eu era.


São Paulo (SP) - 16/08/2025

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BIBLIOGRAFIA DO SITE

PRINCIPAIS FONTES DE PESQUISA

1. Arquivos institucionais e privados

Bibliotecas da Cinemateca Brasileira, FAAP - Fundação Armando Alvares Penteado e Faculdade de Arquitetura e Urbanismo - Mackenzie.

2. Principais publicações

Acervo digital dos jornais Correio de São Paulo, Correio Paulistano, O Estado de S.Paulo e Folha de S.Paulo.

Acervo digital dos periódicos A Cigarra, Cine-Reporter e Cinearte.

Site Arquivo Histórico de São Paulo - Inventário dos Espaços de Sociabilidade Cinematográfica na Cidade de São Paulo: 1895-1929, de José Inácio de Melo Souza.

Periódico Acrópole (1938 a 1971)

Livro Salões, Circos e Cinemas de São Paulo, de Vicente de Paula Araújo - Ed. Perspectiva - 1981

Livro Salas de Cinema em São Paulo, de Inimá Simões - PW/Secretaria Municipal de Cultura/Secretaria de Estado da Cultura - 1990

Site Novo Milênio, de Santos - SP
www.novomilenio.inf.br/santos

FONTES DE IMAGEM

Periódico Acrópole - Fotógrafos: José Moscardi, Leon Liberman, P. C. Scheier e Zanella.

Fotos exclusivas com publicação autorizada no site dos acervos particulares de Joel La Laina Sene, Caio Quintino,
Luiz Carlos Pereira da Silva e Ivany Cury.

PRINCIPAIS COLABORADORES

Luiz Carlos Pereira da Silva e João Luiz Vieira.

OUTRAS FONTES: INDICADAS NAS POSTAGENS.