Memórias do cinema de rua - Di Moretti

Sala de cinema, uma vida e nada mais...

Por Di Moretti - Jornalista, professor de roteiros cinematográficos, cineasta e roteirista.

1.º ATOTESTEMUNHA DE ACUSAÇÃO

Em meados da década de 60, com 5 anos de idade, fui convencido, por minha mãe, a abandonar minha bola de capotão no quintal e ir correndo conhecer uma novidade no bairro, uma sala de cinema. Segundo ela, eu iria ter uma tarde muito divertida e incomum. O cine Júpiter, na Penha, zona leste de São Paulo, estava exibindo “Bambi”, dos estúdios Disney. Entre um saco de pipoca e um puxa-puxa Zorro, a única coisa que me lembro é de chorar copiosamente, abatido pela morte da “mãe do Bambi”. Além da decepção com minha mãe, que me prometera uma tarde feliz, fiquei absolutamente surpreso de como aquele feixe de luz que vinha de um troço grande de metal escuro, chamado projetor, batia naquele pano branco todo esticado, chamado tela, podia ser capaz de mexer tanto comigo a ponto de me fazer cair em lágrimas. Como este negócio esquisito, chamado cinema, podia mexer tanto com uma pessoa a ponto de tirá-la de sua zona de conforto e fazê-la se assustar, rir, chorar, sentir raiva, compaixão, amor...  Aquelas imagens projetadas naquele tecido chacoalharam meus sentimentos e minha vida para sempre.



Esta experiência de ir a esta sala escura, quase toda semana, esperando as estreias das sextas-feiras, virou um ritual de passagem, da minha infância e da minha adolescência. Logo coloquei na cabeça que queria fazer essa coisa chamada cinema, que queria fazer as pessoas se emocionarem, tanto quanto eu me emocionei quando a mãe do Bambi foi morta brutalmente por um caçador desalmado.

Ainda não sabia muito bem em que função e nem como iria sobreviver financeiramente com este sonho impreciso. Naquela altura apenas havia descoberto que eu tinha duas paixões na vida, livros e filmes, e que a carreira de roteirista reunia estas duas coisas. E, lá se vão mais de 30 anos de profissão testemunhando esta pequena epifania infantil.

2.º ATOO PECADO MORA AO LADO

Tanto quanto “Bambi” marcou definitivamente minha infância, o cinema me formou como homem adulto. Digo, não em detrimento da boa educação que recebi do Seu Nelson e da Dona Mina, que os filmes me moldaram como ser humano. Foram as historinhas que meus titios Kubrick, Scorsese, Glauber, Billy, Kurosawa, Nelson, Coppola, Carlão, Scola... me contavam, em várias salas de cinema feias, sujas e malvadas.

Como não reconhecer que era também a época da explosão da minha libido, da minha curiosidade sexual e, de novo, pude contar com a ajuda do pessoal do cinema para resolver este novo probleminha.

Nos anos 70, me mudei para São Bernardo do Campo, no ABC paulista, e passei grande parte da minha adolescência em sessões de filmes que já não eram mais assim tão infantis e ingênuos. Os inocentes personagens da Disney deram lugar a belas e talentosas atrizes, verdadeiras professoras de qualquer primeira noite de um homem: Sonia, Sharon, Leila, Susan, Marilyn, Helena, Sofia, Ornella... Personagens e filmes que testavam o poder do meu império dos sentidos. Como esquecer a estranha sessão de “Laranja Mecânica”, no cine Hawaí, em Bernô City, onde por causa da ridícula censura da época, tarjas pretas perseguiam as partes pudendas da personagem abusada pela gangue de Alex?

Novamente, o cinema se dizia presente no meu destino, tendo aquela conversa intima e fundamental sobre sexo que meu pai nunca teve coragem de ter comigo. Mas, também foi este mesmo pai que me presenteou, no meu aniversário de 14 anos, com uma câmera super 8 Canon e tudo aquilo que até aqui era teoria virou realidade, em despretensiosos curtas metragens. Com esta câmera na mão e muitas ideias na cabeça, comecei a me aventurar do outro lado daquele grande pano branco esticado. Sai da confortável posição de público observador, sentado na poltrona de courvin, e resolvi me aventurar por trás da máquina de escrever que fazia nascer as histórias dos filmes.

3.º ATOPACTO DE SANGUE

Hoje em dia, mais velho, mais acomodado e porque não dizer mais preguiçoso, a experiência de ir ao cinema tem sido cada vez mais rara. Não só pela comodidade do streaming, mas sim porque ir uma sala de cinema hoje é uma aventura muitas vezes arriscada e imprevisível. Vivemos tempos de intolerância, celulares ligados, conversas fiadas e uma total falta de respeito com o outro, sentado ao seu lado. Tudo aquilo que o cinema me ensinou parece ter se perdido completamente.


Testemunhei as grandes salas de cinema de São Paulo irem morrendo pouco a pouco: Metrópole, Comodoro, Majestic, Marrocos, Astor... Felizmente, ainda existem alguns poucos bravos guerreiros que tentam manter este sonho em pé: Adhemar, Jean Tomas, André... Heróis da resistência e da persistência que a cada dia são feridos brutalmente pela especulação imobiliária, pela ganância dos grandes conglomerados de mídia, pela ausência de uma politica de incentivo ao cinema nacional...


Como disse anteriormente, eu fui criado como ser humano e profissional nestas salas de cinema espalhadas pelas ruas da capital paulista e ver esta paulatina destruição me abala profundamente. Fico pensando nas gerações futuras que não vão ter a oportunidade de tirar um ticket na bilheteria, não vão comprar um Mentex com a baleira, não vão ser guiados a sua poltrona por um simpático lanterninha, não vão tirar sarro na última fileira da sala, não vão se assustar com os labirintos mal iluminados do Stanley Hotel, não compreender o drama de Michael em substituir seu pai, não vão tentar resistir aos atrativos pueris de Lolita, não vão se emocionar com a saga de Dora atrás do pai de Josué...




A experiência de ir ou estar numa sala escura é um verdadeiro pacto de sangue que nós, espectadores, celebramos com o cinema. Doamos duas horas de nosso dia para que esta mágica possa acontecer e mudar nossa vida completamente.


Foto do cine Comodoro Cinerama: Site São Paulo Antiga

Memórias do cinema de rua - Roseli Pedroso

O primeiro embalo a gente nunca esquece

Por Roseli Pedroso - Bibliotecária, cronista e criadora do site Sacudindo as ideias.

O inverno havia começado tingindo os dias em paletas cinzas. Tempo de férias que sempre amei. Em 1978, não tínhamos redes sociais, computadores, smartphones. Quando muito, as famílias tinham um telefone fixo. Minha família só foi adquirir um, na década seguinte. Tínhamos a televisão, que de uma forma bem precária, nos ligava com o resto do mundo.

Fui uma garota sonhadora, com imaginação além da conta. Brinquei na rua e estiquei minha infantoadolescência até os dezenove anos. Com essa idade já trabalhava e tinha meu salário. Minha irmã mais velha, apaixonada por cinema, colecionava a revista Set, que nos informava sobre o universo cinematográfico e seus lançamentos. Por influência dela, passei também a reverenciar a sétima arte.

Até aquele ano - que foi um divisor de águas -, tinha ido ao cinema para assistir filmes do Mazzaropi. Quando soubemos da estreia do filme Saturday Night Fever (em 03/07/1978) que por aqui recebeu o título de Os embalos de sábado à noite, a galera amiga ferveu e combinamos de ir juntos.

Garotada de origem humilde, mas rica em alegria e garra de descobrir o mundo, seguimos de ônibus para a tão famosa avenida que - anos mais tarde - seria palco de meu desenvolvimento profissional.

Ao chegarmos em frente ao prédio do cinema Gazeta, observamos a fila enorme que se formara em seus degraus, dobrava a Alameda Joaquim Eugênio de Lima e se estendia para a Rua São Carlos do Pinhal.



Só mesmo o frescor da adolescência e a ânsia das descobertas para encararmos essa espera rindo, conversando e fazendo amizades com quem se encontrava na fila. Os embalos já começavam fora do cinema. Momento de paqueras, risinhos nervosos e o frio na boca do estômago. Ninguém fazia ideia do quanto aquela película mudaria nossas vidas.

Todos devidamente sentados, o apagar das luzes e o barulhinho conhecido do rolo se iniciando. Aos poucos, o silêncio se restabeleceu e muitos olhos presos na tela. Arrepio de emoção acompanhou uma viagem que, pelo menos para mim, foi inesquecível.

A história de jovens que trabalhavam durante o dia e aos fins de semana, mergulhavam na dança, paquera e música para espairecer e se fortalecer para a dura volta à realidade, fez com que houvesse identificação total.

Todos desejavam ser Tony Manero e Stephanie, o casal da história. A trilha sonora do filme foi um presente à parte. O LP que minha irmã comprou, existe até hoje completamente riscado de tanto que ouvimos, cantamos e dançamos.

Não teve jeito. Papai teve de ceder e transformar um cômodo nos fundos da casa para ser nossa danceteria particular.

Ao som de Bee Gees, Tavares, Kool & The Gang, KC & and the Sunshine Band e tantos outros que fizeram a época Disco, capitaneado pela nossa rainha negra Donna Summer, minha pré-adolescência teve brilho do lurex, aliado a fantasia de que a vida era uma eterna pista de dança. Assim como Tony Manero, a descoberta da vida real e a passagem para a vida adulta teve seu amargor, mas isso, fica para uma outra história. Aqui, o embalo é nostálgico e permanece doce.

O nascimento de um cinéfilo: uma autobiografia

Por Antonio Ricardo Soriano

Os filmes de Jerry Lewis, na Sessão da Tarde, as reprises de A Fantástica Fábrica de Chocolate ou, até mesmo, os antigos seriados de TV, como Viagem ao Fundo do Mar, me despertaram um grande interesse pelos filmes logo na infância. Aguardava com ansiedade a chegada das férias escolares para poder assistir aos muitos filmes que passavam no Festival de Férias nas tardes da TV. Isso nos anos de 1970 quando o VHS não havia chegado ao Brasil.




Quem me levou pela primeira vez ao cinema foi meu pai. Assistimos juntos Se Meu Fusca Falasse e filmes de Os Trapalhões em cinemas próximos de casa, como o cine Nacional (no bairro da Lapa) e os cines Haway e Flórida (no bairro de Perdizes).

Mas foi em 1980, quando eu tinha apenas 10 anos de idade, que a paixão pelo cinema se manifestou. Meu tio Gilberto me levou para assistir ao filme Xanadu, com Gene Kelly e Olivia Newton-John, no melhor cinema de São Paulo: o Comodoro Cinerama. Foi ali que tive, pela primeira vez, a experiência do cinema espetáculo. Um musical maravilhoso visto numa tela gigantesca e com som de extrema qualidade, que só o cine Comodoro podia nos proporcionar. O filme me despertou a curiosidade de pesquisar sobre cinema, na época apenas em jornais e revistas.

Lobby card do filme Xanadu (1980)


Em seguida tive novas e agradáveis experiências no cine Comodoro, como as exibições de E. T. - O Extra-Terrestre, Tron – Uma Odisseia Eletrônica, Jogos de Guerra, Indiana Jones e o Templo da Perdição e De Volta para o Futuro. Nesse período, passamos a ter nas bancas de jornal, uma revista especializada em cinema, a Cinemin, que vinha do Rio de Janeiro. Uma excelente revista com rico conteúdo sobre as novidades do cinema e sua história.  

Interessante dizer que, talvez, aquela minha recente paixão pelo cinema acabou influenciando e motivando o meu tio Gilberto. Ele também se interessou mais por cinema e, a partir daí, passou a comprar livros, revistas e discos com a trilha sonora de filmes.

Meu tio Gilberto (in memoriam)


Passei a dividir a paixão pelo cinema com a música. Em 1981, uma grande banda de rock britânica veio pela primeira vez ao Brasil: era Freddie Mercury e sua banda Queen. O show foi transmitido ao vivo pela Bandeirantes FM e eu gravei tudo em duas fitas cassetes. O Rock & Roll passava a ser o meu ritmo musical preferido.

Em 1983, senti pela primeira vez a “presença da Força” assistindo ao filme O Retorno de Jedi no cine Ouro (no Largo do Paissandú), o sexto episódio da saga Star Wars. Depois, precisei aguardar a reprise de Guerras nas Estrelas e O Império Contra Ataca pela TV aberta.

A curiosidade e as pesquisas sobre cinema aumentaram. Em 1985, tive a ideia de fazer um jornal sobre o tema, talvez, influenciado pelo farto material que meu tio havia adquirido. A ideia surgiu em um sonho e, ao acordar, fiz os primeiros esboços. Algo bem simples, com colagens de notícias de jornais.

Apresentei o jornal aos meus primos Roberto e Marcos Gabler, que logo se interessaram. O Marcos já trabalhava na área de publicidade e se ofereceu para fazer o design gráfico do jornal. Estimulados, eu e o Roberto combinamos de pesquisar e redigir textos para o jornal que teve o nome escolhido no mesmo dia: Cine Fanzine.

Os números 1 e 2 do Cine Fanzine


Como ainda não existia a internet, essas pequenas publicações, chamadas de fanzine (fan + magazine) eram bem cultuadas.

O Cine Fanzine acabou ficando bem atraente e com bom conteúdo textual. O primeiro número foi lançado no início de 1986 e teve uma tiragem bem pequena que foi distribuída no Cineclube Oscarito. Em seguida, alguns exemplares foram enviados através de cartas aos associados do The Pictures Club, um fã-clube de cinema também criado por nós. Um exemplar do fanzine acabou chegando à redação de jornalismo da TV Cultura, que nos chamou para duas entrevistas: uma ao vivo, no programa especializado em cinema Imagem & Ação e outra gravada, no programa de variedades Panorama.

Entrevista ao vivo no programa Imagem & Ação da TV Cultura


O lançamento do fanzine culminou com a chegada do videocassete em minha casa. Que alegria! Começavam ali as maratonas de filmes durante os finais de semana. Cheguei a ficar sócio da recém-lançada 2001 Vídeo Locadora (na Av. Paulista) para locar clássicos do cinema. Os lançamentos ficavam por conta das locadoras do bairro.

Lançamos o nº 2 do Cine Fanzine em setembro de 1986 e já preparávamos o terceiro quando tivemos que cancelar o projeto por motivos profissionais. Um ciclo criativo de minha adolescência terminava, cedendo lugar para a fase adulta.

A partir dos anos de 1990, acompanhei com tristeza o fechamento de quase todos os cinemas de rua que frequentei e outros que acabaram mudando a programação para filmes pornográficos. A Cinemark trouxe suas micros-salas de cinema para os shoppings e, logicamente, não me encantaram. Passei um longo período longe dos cinemas, mas não das vídeo-locadoras. Acompanhei o cinema através dos lançamentos em VHS e, depois, dos DVD’s.

Os anos se passaram, casei e tive uma linda e encantadora filha. Foram anos muito felizes e, também, de muito trabalho.

Em 2003, tive a felicidade de começar a trabalhar na biblioteca do Colégio Dante Alighieri. Passei a ter acesso diário a muitas informações culturais. Foi uma inspiração enorme para começar a concretizar mais uma grande ideia.

Sentia saudades daqueles incríveis momentos no cine Comodoro, lá nos anos de 1980, e a ideia de homenagear esse cinema passou a ser uma constante. Pesquisava na internet e não encontrava quase nada sobre o cinema. Apenas dois textos incríveis: um do cineasta pernambucano Kleber Mendonça Filho e outro do carioca e professor João Luiz Vieira.

O cine Comodoro Cinerama


A ideia inicial era pesquisar e guardar tudo que eu pudesse encontrar sobre o cine Comodoro e, mais tarde, publicar um livro. Em 2007, minha amiga bibliotecária e escritora Roseli Pedroso, mostrou-me a ferramenta Blogger para a criação de blogs. Ela estava criando o seu blog sobre biblioteconomia, o Bibliotequices & Afins.

Era o que faltava para se homenagear o cine Comodoro! Rapidamente comecei a criar o meu primeiro blog.

Minha esposa iniciou uma Pós-graduação no Mackenzie e passei a levá-la. No aguardo do término das aulas, aproveitava o tempo livre para fazer pesquisas na biblioteca de arquitetura da universidade. Foi quando consegui um volume enorme de fotos e informações sobre os antigos cinemas de São Paulo. 

Fiquei fascinado com a qualidade do material adquirido e a ideia de homenagear o cine Comodoro se ampliou. O blog, agora, passava a contar a história de todos os antigos e atuais cinemas de São Paulo. O blog Salas de Cinema de São Paulo acabava de ser criado!

O início foi muito difícil. Tinha muito material e pouco tempo para publicar. Tive que fazer uma grande mudança no blog: dividi-lo em dois - ou melhor, criar mais um: o blog Salas de Cinema de São Paulo - Banco de Dados. Não dava para misturar as informações de cada cinema com textos (crônicas, memórias, biografias, etc.). Demorou um ano para que o layout dos dois blogs fosse concluído.

Tenho muito orgulho de ter criado os sites 
Salas de Cinema de São Paulo! Agora com os domínios adquiridos. 
As páginas já possuem uma enorme quantidade de informações sobre a história dos cinemas de São Paulo e são cultuadas por pesquisadores, universitários e amantes da sétima arte.

Recentemente, de 2013 a 2018, voltei a frequentar os cinemas. 
Desta vez, na região da Av. Paulista, semanalmente, nos dias do rodízio do meu carro. Uma deliciosa e inesquecível maratona de mais de 160 filmes assistidos!

A experiência de assistir os filmes no cinema é infinitamente superior a assisti-los em casa.

Deixo aqui, nesse texto, um pouco de minha trajetória com o mundo do cinema. Um mundo de histórias reais e fictícias que nos emocionam. A chamada Sétima Arte que, para mim, é a soma de todas as artes!

O cine Comodoro Cinerama

Por Antonio Ricardo Soriano

A inauguração

 A frente do cinema no dia da solenidade de inauguração (Folha da Manhã, 15/08/59)

O cine Comodoro funcionava na Avenida São João, 1462, no centro da capital. A cerimônia de inauguração do cinema foi realizada, às 14 horas, do dia 14 de Agosto de 1959 e foi divulgada no jornal Folha da Manhã, de 15/08/1959. Teve a presença da Banda de Música da Força Pública, com uniforme especial. Uma viatura do Corpo de Bombeiros, na sessão noturna, levou refletores e segurança. Cordões de isolamento demarcaram, em frente ao cinema, um corredor para os carros que traziam convidados especiais e praças das Forças Armadas perfilavam-se nos dois lados da porta de entrada. Havia-se anunciado a presença do Presidente da República, mas ele não compareceu.


Anúncio de inauguração do cine Comodoro (Folha da Manhã, 15/08/1959)

Artigo do jornal Folha da Manhã, de 19/08/1959:

Isto é Cinerama

Com duas sessões especiais, uma dedicada a critica falada e escrita de São Paulo e Rio, outra, de gala, na noite de sexta-feira última, inaugurou-se nesta capital, o Cinerama, processo óptico e eletrônico a constituir-se em novo espetáculo cinematográfico, surgido logo após a última guerra e há anos funcionando, com grande êxito, nas principais cidades de muitos países do mundo. Na capital paulista, construiu-se uma sala funcional, destinada a comportar a complexa aparelhagem do Cinerama, os seus três enormes projetores, dispostos em meio arco, a convergir, simultaneamente, o tríplice feixe luminoso na ampla tela convexa e metálica do palco, seus amplificadores e alto-falantes colocados por toda a sala, de forma a proporcionar a audição de planos de som, em alta fidelidade, o chamado 'som estereofônico' ou 'som em relevo'. A sala do Cinerama, o cine Comodoro, está instalada na Av. São João e possui todos os últimos aperfeiçoamentos do processo e de seus sistemas de som, tudo disposto em arquitetura sóbria e decoração simplíssima. Embora não muito grande, a sala do Comodoro é confortável, de ambiente agradável.

A sessão inaugural iniciou-se com a apresentação de uma síntese da história do cinema, contada pela imagem comum, em branco e preto, e pela voz de Lowell Thomasantigo colaborador de Fred Wallero inventor do Cinerama, falecido há pouco tempo. Essa apresentação, por sinal, foi o lado lamentável do espetáculo, eis que nessa falsa 'história do cinema' se menciona o nome e a ação de todos os inventores norte-americanos e ingleses que colaboraram na descoberta e no aperfeiçoamento do cinema, sendo, entretanto, esquecida a contribuição francesa, com a omissão dos nomes e dos inventos de seus pesquisadores, Joseph Plateau, o 'fuzil fotográfico' de Marey, antecedendo o seu aparelho 'cronofotográfico', Georges Demeny, o 'teatro óptico' de Reynaud, até chegar-se ao 'cinématographe' dos irmãos Lumière, os verdadeiros inventores da câmara cinematográfica, com a sua estrutura mecânica e física até hoje a funcionar na criação do espetáculo cinematográfico. Isso tudo foi esquecido nessa 'história do cinema' parcial, que torna antipática e suspeita a apresentação do Cinerama, o que é pena, realmente, pois as conquistas do espírito humano, depois de postas ao alcance do domínio público, não pertencem a ninguém, nem conhecem fronteiras, são apenas peças do patrimônio de toda a humanidade.

Quanto ao espetáculo proporcionado pelo Cinerama, não há dúvida, é uma curiosa e fascinante apresentação audiovisual, mas a prescindir da linguagem e da estética do cinema. Não proporciona ainda, a técnica do Cinerama, uma visão plenamente realizada dos aspectos do mundo, dadas certas imperfeições na junção das imagens e no sincronismo dos três projetores, coisa, aliás, a não se constituir em defeito intolerável e que, possivelmente, possa a vir desaparecer com aperfeiçoamentos futuros. Algumas sequencias de Isto é Cinerama, contudo, se apresentam revestidas de inegável beleza e, por vezes, de impressionante realismo. Assim é na sequência da montanha russa, na do passeio em gôndola pelos canais de Veneza, ou em barco nos lagos da Flórida, isto é, quando há movimento intenso na estrutura da imagem. Já nas cenas estáticas - a opera no 'Scala' de Milão, o coro dos 'Meninos Cantores de Viena', ou numa catedral norte-americana - a impressão do relevo é menos real e a junção defeituosa das três imagens se salienta um pouco mais. De qualquer forma, aí está um espetáculo curioso, que só a audácia de um homem de muita visão, o Sr. Paulo Sá Pinto, traria para São Paulo, no lastro de outras realizações suas, como as das salas de alto luxo, por exemplo, Rivoli e Olido, recentemente inauguradas. - B. J. Duarte

A Empresa Cinematográfica Comodoro, trouxe o sistema *Cinerama para o Brasil e, através de um contrato, teve dois anos de exclusividade para exibi-lo. O cinema foi construído especialmente para receber o Cinerama e de baixo de sua marquise havia o letreiro 'sistema que revolucionou o mundo das diversões'.

As três cabines de projeção do sistema Cinerama original 

Interior do cinema na época de sua inauguração

O fundador: Paulo Sá Pinto (1912-1991)

Paulo Barreto de Sá Pinto foi um dos maiores empresários da história da exibição cinematográfica no Brasil.

Paulo Sá Pinto (Folha da Manhã - 11/07/62)

Mineiro da cidade de Santos Dumont, Paulo Sá Pinto veio ainda criança para o Rio de Janeiro e seu primeiro emprego foi como conferente de alfândega, no Cais do Porto. Depois se transferiu para Porto Alegre, onde teria trabalhado em publicidade e começado a se interessar pela área de exibição. Seria, entretanto, em São Paulo, que fundaria a Empresa Cinematográfica Paulista, cujo os primeiros cinemas construídos foram o Ritz (1943) e o Marabá (1945). No final dos anos 40, expandiu o seu 'circuito de cinemas' para Porto Alegre e Curitiba, fundando a Empresa Cinematográfica Sul.

Foi ele, o primeiro a exibir *Cinemascope no Brasil, lançando O Manto Sagrado no cine República(onde instalou uma tela gigantesca), em 22 de fevereiro de 1954, quando comemorava seus 42 anos e São Paulo sediava um Festival Internacional de Cinema, dentro das comemorações de seu 4º centenário. Foi, também, no cine República que Paulo Sá Pinto instalou a maior tela da América Latina, em 1955.

Ele sempre foi inovador. Ao ver em Nova York um filme em Cinerama, This Is Cinerama (1952), decidiu instalar o sistema em uma de suas salas, o Comodoro, fazendo de São Paulo, a única cidade brasileira que realmente assistiu ao Cinerama legítimo, com três projetores trabalhando simultaneamente. Quando inaugurou o cine Olido, em dezembro de 1959, em São Paulo, com Tarde Demais para Esquecer, levou uma orquestra sinfônica para apresentar o clássico tema 'An Affair To Remember'.

Pouco tempo antes de falecer, Paulo Sá Pinto, já gravemente doente, ainda comandava suas empresas, que administravam uma rede de mais 60 cinemas espalhados em sete capitais (só em São Paulo, 40 salas), tendo como sócios, os irmãos Magalhães Rodrigues e Francisco José Lucas Neto. Além disso, era sócio de vários outros empreendimentos e da distribuidora Art filmes. Despachava em seu gabinete na Avenida São João, com sua fiel secretária, dona Lourdes Peixoto, que o acompanhou por mais de 30 anos.

Paulo Sá Pinto faleceu em 24 de janeiro de 1991, no Hospital Sírio Libanês, em São Paulo, vítima de insuficiência respiratória, ocasionada por problemas no pulmão.

Exibições especiais

A 1ª Exibição

Isto é Cinerama (This Is Cinerama, EUA, 1952) foi o primeiro filme exibido e lotou os 1400 lugares do cinema (incluindo platéia e balcão).

O professor João Luiz Vieira descreve esta exibição em seu texto 'Não dá para esquecer o impacto que era entrar no cinema':

“Os espectadores iam enchendo a sala aos poucos e, em seguida, as luzes começavam a diminuir enquanto que as cortinas se abriam o suficiente para mostrar uma imagem quadrada, correspondente ao tamanho dos 35 mm. normal. Na tela, em preto e branco, aparecia um documentário, apresentado por Lowell Thomas, produtor do espetáculo, que fazia um breve histórico cronológico e evolutivo das imagens em movimento, indo até a pré-história e o homem da caverna até, claro, o Cinerama, a 'maior conquista do homem', etc. Mostrava as câmeras, descrevia o processo de filmagem até que finalmente anunciava a novidade aos espectadores: ‘...e agora, senhoras e senhores... vamos ao Cinerama!’ conclamando a platéia e inscrevendo-a diretamente dentro do espetáculo. Aí, já colorida, surgia a imagem do trenzinho subindo uma célebre montanha russa de Coney Island, no Brooklyn, imagem que se formava aos poucos, diante de nossos olhos maravilhados, exatamente sincronizada com as cortinas que, então, se abriam completamente”.

Pôster americano do filme Isto é Cinerama

“Quando o trenzinho chegava à parte mais alta da estrutura da montanha russa, a imagem estava completa e a tela curva completamente aberta com os três projetores em ação. Começava a queda vertiginosa do trenzinho ao mesmo tempo em que, por toda a sala, o som estereofônico se abria, num  envolvimento com o espetáculo absolutamente inédito até então. Era uma sensação física, os espectadores se agarravam nos braços das poltronas. Você, digamos, estava 'dentro do espetáculo' e dele fazia parte, como a publicidade não cansava de enfatizar”.

“Dá para imaginar o impacto provocado por toda essa tecnologia, principalmente aos olhos de um garoto de dez anos de idade, quando tudo sempre parece ainda maior? Todas as sessões tinham prólogo, intervalo e, no final, com as cortinas já fechadas, ainda apresentavam uma 'música de saída' que acompanhava os espectadores no esvaziamento da sala. Era um ritual de verdade, incluindo os espectadores, em geral, bem arrumados”.

Outras exibições especiais

Infelizmente, o filme A Conquista do Oeste (How the West Was Won - 1962), único filme de longa-metragem rodado no sistema Cinerama original, não foi exibido no Comodoro. Estreou, no cine Metro, em 08/07/1965 (informação, gentilmente, cedida pelo colaborador João Carlos Reis Pinto), enquanto que no Comodoro era reprisado, novamente, Cinerama em Busca do Paraíso.

João Luiz Vieira, também, descreve em seu texto, outras exibições especiais no Comodoro:

"Foram exibidos e muito reprisados, entre 1959 e 1965, os filmes produzidos no processo Cinerama original":
Cinerama Holiday (1955) - Estreia em 25/11/1960
As Sete Maravilhas do Mundo (Seven Wonders of the World, 1956) - Estreia em 09/03/1960
Cinerama em Busca do Paraíso (Search For Paradise, 1957) - Estreia em 18/05/1961
Aventuras nos Mares do Sul (South Seas Adventure, 1958) - Estreia em 31/10/1961
Velas ao Vento (Windjammer, 1958) - Estreia em 23/03/1963

"Pelos títulos, dá bem para imaginar o que eram esse filmes de viagens. Depois, o formato se esgotou, não tinham mais filmes e, em 1966, o cinema foi reformado para exibir, em sua mesma tela gigantesca e curva, películas em 70 mm. (no princípio ainda mantendo o nome de Super-Cinerama), sem emendas, com um único projetor. Foi reinaugurado, em 20/08/1966, com o filme Uma Batalha no Inferno (Battle of the Bulge, 1965). Continuei assistindo ali a filmes exibidos ainda com exclusividade, em Super Cinerama, como Khartoum - A Batalha do Nilo (Khartoum, 1966), Nas Trilhas da Aventura (The Hallelujah Trail, 1965), Krakatoa - o Inferno de Java (Krakatoa East of Java, 1969), além de versões ampliadas, de 35 mm. para 70 mm., como Os Dez Mandamentos (The Ten Commandments, 1956), por exemplo, entre muitos outros".

Frente do cine Comodoro na estréia do filme Terremoto

Em 1974, houve uma exibição que causou muita repercussão. O filme Terremoto (Earthquake) foi exibido com um sistema de som diferente, chamado 'Sensurround'. Tratava-se de um esquema especial de alto-falantes de baixa freqüência que era emprestado pelo distribuidor do filme. O sistema, que pode ser considerado o 'avô do sub-woofer', era tão poderoso, que provocou tremores no prédio onde se localizava o cinema e gerou reclamações dos moradores. O sistema só era usado nas cenas em que o terremoto estava acontecendo. Terremoto foi exibido exclusivamente no Comodoro e ficou em cartaz por quase 10 meses.

Em 1992, o fã-clube Frota Estelar Brasil, em parceria com a Paramount Pictures do Brasil, 'fechou' o Comodoro para a pré-estréia do filme Jornada nas Estrelas VI – A Terra Desconhecida. Lá estiveram cerca de mil fãs devidamente uniformizados e fantasiados.

A projeção e a tela

Comodoro foi construído com o que havia de melhor nos quesitos projeção e tela. A tela media 20 metros de comprimento por 7 de altura, com 146 graus de curvatura, em função do processo de projeções simultâneas do sistema Cinerama. Formada por um conjunto de inúmeras tiras de náilon, a tela ficava atrás de uma enorme cortina vermelha.

O cineasta Kleber Mendonça Filho descreve a impressão que se tinha ao ver o formato e o tamanho da tela, em seu texto 'Comodoro visitado antes do incêndio':

"... impossível não babar ao olhar para a cortina vermelha em camadas, fechada. A tela era mesmo tão curva, teria que olhar para trás, por cima dos ombros, para ver as pontas da tela, esquerda e direita. Você sentia-se cercado pela tela de cinema".

A tela do Comodoro e sua enorme cortina (Livro "Salas de Cinema de São Paulo")

Para a exibição dos filmes em Cinerama, o Comodoro era equipado com três projetores americanos de 35 mm. da marca Century (com lanternas Ashcraft Suprex) e mais um projetor de 35 mm. da marca Simplex (modelo E7) só para exibição de jornais e documentários nacionais (naquela época havia uma lei que obrigava os proprietários de cinema a exibi-los).

Ilustração de uma sala de projeção Cinerama

Os três projetores Century (cada um projetava em 1/3 da tela, para dar o efeito do Cinerama), depois de alguns anos, foram substituídos por dois fantásticos aparelhos da marca italiana Cinemecanica (modelo Vitória 10) que eram junto com os da marca Philips, os melhores projetores cinematográficos. Estes dois projetores exibiam em bitola de 70 mm. ou 35 mm.

O som

O som do Comodoro era simplesmente o que de melhor existia no mercado cinematográfico de exibição. Eram amplificadores Dolby Stereo (modelo CT 100).

Interior do Comodoro ainda em construção (Folha da Tarde, 28/07/59)

As caixas-acústicas, visíveis na foto, davam a impressão que eram enormes, mas na verdade eram alto-falantes (Altec 515) de 15 polegadas com 35 watts, somente. As sete caixas-acústicas, fixadas atrás da tela de projeção, tinham as laterais feitas com enormes chapas lisas de compensado, que aproveitavam a ressonância da caixa e com isso emitiam som de baixa freqüência, pois naquela época não existiam equipamentos para sub-woofer.

Em 25 de dezembro de 1985 é inaugurado o então mais moderno sistema de som Dolby Stereo do país, com o filme De Volta Para o Futuro.

A primeira reforma

A reforma iniciou-se em 03/09/1979 e o cinema ficou fechado por cerca de 90 dias, sob supervisão do arquiteto Ricardo Gresbach, que mexeu com tudo.

"Só vai ficar as paredes", anunciou o supervisor da CIC (Cinema International Corporation), Mariano Souto, empresa que administrava o cinema. Disse que, a falta de ar condicionado, o péssimo estado do piso e o estado lamentável dos banheiros, determinaram as obras, que absorveram 10 milhões de cruzeiros.

Mariano Souto anunciou, também, que a reforma previa revestimentos internos em gesso, novas poltronas, seis banheiros reformados, troca dos equipamentos de som e novas cortinas.

A reabetura foi no dia do Natal de 1979, com a exibição do filme O Sargento Pepper e Sua Banda (Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band).

De 70 mm. para 35 mm.

Em 1991, o Comodoro já projetava filmes em 35 mm. (cópia normal) e, após intervenção judicial, teve que modificar os escritos de 70 mm. da fachada. A projeção ocupava somente metade de sua grande tela, mas o som ainda continuava excelente. Uma das grandes produções exibidas neste período foi o filme Os Intocáveis, de Brian De Palma.

Mesmo assim, diante de tanto declínio, o gerente do Comodoro parecia ser um apaixonado pelo cinema, pois passou a fechar, novamente, as enormes cortinas que cobriam a tela e somente abri-las no início da exibição. Por um longo período, este 'culto' havia-se esquecido.

O fim do Comodoro

O jornal Folha de S. Paulo publicou em 24 de março de 1997:

Centro de São Paulo se despede de mais uma sala de cinema.
O tradicional Comodoro encerrou suas atividades ontem.

O cinema Comodoro, tradicional sala de projeção do centro da cidade, acaba de ser fechado. Ontem foi seu último dia de atividades. “Recebi ordens para fechar a sala no domingo, mas não sei o que aconteceu”, disse Roberto Antunes, coordenador da distribuidora de filmes Cinema International Corporation (CIC), em São Paulo.

Fachada do cinema em seu último dia de exibições (Veja São Paulo - 02/04/1997)

O incêndio

O jornal Agora publicou em 26 de agosto de 2000:

Fogo destrói antigo cinema Comodoro
Por Andréa Martins
O incêndio durou cerca de uma hora e pode ter sido causado por problemas na rede elétrica do cinema, disse o coronel Marques, do Corpo de Bombeiros do Cambuci.

Parte de trás do Comodoro (onde ficava a tela e platéia) em chamas

O fogo começou por volta das 19h15 de ontem nos fundos do cinema da avenida São João (região central), desativado desde março de 1997.

Ao todo, 21 carros do Corpo de Bombeiros e 90 homens participaram da operação. Segundo o coronel, toda a parte interna do cinema e o telhado foram destruídos. Ninguém ficou ferido.

Moradores dos blocos A e B do edifício Lucerna, que ficam em cima do cinema, disseram que desde o início da semana havia movimentação de pessoas fazendo limpeza no local. Segundo uma mulher, que não quis se identificar, o cinema foi comprado há dois anos pelos proprietários do Bingo Avenida São João, em frente ao cinema. Ela disse que o local foi invadido várias vezes por mendigos. 

Funcionários do bingo afirmaram que não havia nenhum responsável pelo estabelecimento no local.

Outros moradores do edifício disseram ter ouvido barulho de explosão. “Ouvi vários estampidos e barulho de vidros se quebrando”, afirmou o advogado João Ferreira, 60 anos, morador do prédio há dois anos.

Cada bloco do edifício tem 58 apartamentos. Muitos ficaram alagados com a ação dos bombeiros. “Minha casa ficou inundada”, contou Jéssica Emanuele, de 20 anos, moradora do 13º andar.

Mais fotos e informações do Comodoro no "Banco de Dados" do Blog.

* Cinerama - Para maiores informações sobre o Cinerama, acesse neste blog, os textos 'Maravilhas do Cinerama' e 'Não dá para esquecer o impacto que era entrar no cinema', de João Luiz Vieira ou clique aqui.

* Cinemascope - Lentes anamórficas são lentes que conseguem filmar uma cena panorâmica sem ter de mudar o tamanho do quadro. Utilizando-se lentes semelhantes no projetor, a imagem comprimida (estreitada para caber no quadro) é ampliada até a proporção 2.35:1, formando uma cena cuja largura é mais do que o dobro da altura. O coeficiente entre altura e largura de um filme normal, seja 8 mm., 16 mm. ou 35 mm., é de 1.33:1. A primeira utilização comercial dessas lentes se deu no início da década de 60, quando os técnicos da Fox desenvolveram o processo widescreen, empregando as lentes anamórficas inventadas, em 1927, por Henri Chrétien. O processo foi batizado de Cinemascope.

Texto atualizado em 20/08/2018

ESTE TEXTO PODERÁ SER REPUBLICADO À MEDIDA QUE SURGIREM NOVAS INFORMAÇÕES SOBRE O CINE COMODORO.

Sobre o audiovisual, ou sobre viver imagens e os espaços a ela dedicados

Por Igor Andrade PontesPesquisador na Cinemateca Brasileira.

Este ensaio talvez escape do intuito do convite inicial de Soriano, mas, é uma oportunidade de concretizar, ou de saciar, em parte, algo que venho a muito querendo organizar: algumas palavras sobre certa relação com a imagem, num âmbito bastante pessoal . Aqui, falha, ou pode ser falha, outra relação, essa menos apaixonada, que é a minha relação com a escrita (que não deixa de ser apaixonada, mas que se mostra às vezes uma relação de desconfiança e rupturas, de ridículo, de vontade, desvontades, insistências e desistências, a depender do perfil do texto. Aqui adotarei o modo que gosto de escrever, ou que escrevo sempre que me é permitido: em fluxo de pensamento, sem grandes amarras).

As vivências aqui escritas envolvem diferentes cidades: Rio de Janeiro (sobretudo), São Paulo, Vitória, Ouro Preto, Pordenone e Bolonha. Este ensaio aponta para certa vontade de contribuir, de compartilhar ideias e experiências (lembro da fala de Luisa Malzoni, colega da Cinemateca Brasileira, sobre essa ânsia em compartilhar experiências, quando do lançamento de seu livro no âmbito do Projeto Nitratos). Assim, este ensaio é também uma busca por concatenar tudo o que surgir durante sua escrita. É um exercício de redação, e é um exercício de memória, e é um exercício de curadoria [1]. Um exercício falho, óbvio, contraditório e incoerente. É uma tentativa falha e tosca de traçar algum caminho retrospectivo. O texto aqui desenvolvido é escrito sob a influência das minhas experiências enquanto estudante de cinema, na PUC-Rio e na UFF, e enquanto técnico em preservação audiovisual (CTAv), catalogador (CTAv, Cinemateca do MAM, Cinemateca Brasileira) e programador de cineclube (Cinemateca do MAM, Estação Botafogo).

Por algum tempo mantive uma lista de filmes que assisti em salas de cinema. Essa lista continha os parâmetros sobre o que seriam salas de cinema: salas de exibição no geral, de cabines a salas de shopping. Alimentei essa lista entre 2011 e 2018 aproximadamente, e então parei. Nela, eu buscava rememorar e manter atualizada todas as minhas idas ao cinema. Existe um recorte geracional a ser levado em conta como alguém nascido em 1988: em parte, minha relação com salas de cinema é uma relação com salas de cinema de shoppings. O espaço com o cinema do Shopping Iguatemi [2], durante a minha infância, trazia cartazes de filmes dos anos 1930 decorando as portas de cada sala. Aquilo me impactou. Ficou na minha memória. Eu, criança, adolescente, não conhecia aqueles filmes, mas, ainda assim, aquilo me marcou esteticamente. Havia algo ali. Anos depois, pesquisando, descobri quais eram os filmes estampando cada porta de acesso das salas do Iguatemi. Já esqueci quais eram. Lembro vagamente de duas: uma trazia um filme de John Ford; outra, uma comédia com atrizes ruivas. Eu por algum tempo não soube especificar se essa lembrança do design do saguão de entrada do cinema do shopping Iguatemi era mesmo uma lembrança real ou algo que eu havia confundido em minhas memórias. Eu tenho uma vaga lembrança do período em que essa decoração foi trocada, e da minha decepção. A decoração foi trocada talvez por nada. Por portas sem nada nelas.



Dessas memórias de infância, guardei algumas emblemáticas (para mim): uma sessão de As Tartarugas Ninjas III, possivelmente com meu pai, possivelmente no Shopping Nova América, em Del Castilho (Rio de Janeiro), nos anos 1990; Space Jam, que assisti com meu pai, no Shopping Nova América, minha primeira lembrança de andar de metrô na Linha 2 (o metrô estação Del Castilho deixa o passageiro quase dentro do shopping, até hoje); 101 Dálmatas, com minha madrinha, não sei em qual sala, e nunca consegui lembrar; George, O Rei da Floresta, com Brendan Fraser, em uma das últimas sessões no cinema Carioca, na Praça Saens Peña. Meu pai fez questão de nos levar, eu e meu irmão, com nossa mãe, para essa sessão. Era o crepúsculo mesmo da sala. Últimos momentos antes dela ser fechada, em 2000. Eu estive lá sabendo disso. Com pesquisa, seria possível eu lembrar mais detalhes, mas, usando apenas minha memória, lembro da sensação de vazio e escuridão no saguão de entrada do Carioca naquele dia. E lembro do sentimento de despedida que senti, então com 12 anos. E lembro que o filme era ruim, mas que pra mim, genuinamente, naquele dia, o que importava era a oportunidade de estar naquele lugar pela primeira e última vez. Essa perspectiva, de primeira e última vez, foi sentida por mim naquele dia. Crepuscular. Depois, conversando com meu avô materno, Fernando, soube que ele frequentou muito o Carioca e o América. Quando tive essa conversa com meu avô eu já era um estudante de cinema na PUC-Rio. Ele me contou que assistiu muitos filmes da Atlântida ali, naquele corredor da Rua das Flores. E me contou que uma vez, criança, após um filme de faroeste, ficou na Rua das Flores, na saída do Carioca, aguardando, enganado por seus irmãos, os vaqueiros e os indígenas saírem do cinema, após a sessão. Depois, na pós-graduação, na UFF, ouvi João Luiz Vieira, da geração de meu avô, um pouco mais jovem, contar sobre os valores dos pilares do Carioca, das colunas externas que sustentam a marquise do ex-cinema, agora igreja evangélica. E lembro de João Luiz falando da importância das marquises nas salas de cinema, sobre acolhimento, e sobre proteger das intempéries do tempo, das chuvas, do sol, de acolher, do cinema ser um lugar de acolhimento. Retomando as sessões de cinema de minha infância, ficou marcada, ainda, a vez em que assisti Hércules, da Disney, com meu primo, minha prima e minha tia, em algum shopping, mais uma vez, possivelmente o Nova América. Promovendo o filme, no shopping, havia alguém fantasiado de fauno, como o personagem do filme, amigo de Hércules, e tive muito medo daquele personagem andando pelo mundo real; lembro de O Príncipe do Egito, que assisti em um cinema de shopping em Vitória, com meu irmão e meus pais (ficou marcada a experiência de ir no cinema durante uma viagem, fora do Rio).



Em 2012, em Pordenone, durante a Giornate del Cinema Muto, em uma reunião do grupo de estudos Collegium, defendi, em discussão com David Robinson, que quando assistimos a um filme, estamos assistindo novamente, ao mesmo tempo, em nossa memória, a todos os filmes aos quais já assistimos até então. Assistir a um filme é como estar diante do Aleph de Borges. Para além das imagens em movimento, existe ainda, nesse Aleph, todo o contextual e o intertextual: nós e nossas experiências, nossas vivências, nossas sensações. Memória. Memórias. Lembranças. Gosto desse paralelo entre o Cinema e o Aleph. Toda a nossa memória. Camadas sobrepostas. Camadas formando uma só camada, sem sobreposições, em uma interação dinâmica e perfeita. Ou perfeita em sua imperfeição. De minha infância, destaco também outro espaço de cinema, a TV. Muitas memórias da relação da minha geração com os filmes são memórias de nossa relação com a TV, sobretudo a TV aberta, e as faixas de programação de filmes da Globo e do SBT. Na Globo, a Sessão da Tarde, no SBT, o Cinema em Casa. Cinema em casa. Sair de casa para ir ao cinema sempre foi algo importante para mim. Mas assistir filmes em casa, apesar da obviedade já tantas e tantas vezes repetida de se tratar de uma experiência distinta, foi, também, uma experiência formadora. E não penso formação enquanto algo edificador ou intelectualmente “enriquecedor”, mas, experiências formadoras num sentido de gerar vivências, experiências, experiências emocionais e experiências estéticas. Imagens que nos formam e que são por nós formadas. Emoção e cognição. Experiência e estética. Vivenciar. Experimentar. Assisti muitas sessões de filmes em casa pela TV aberta com meu irmão ao longo de nossa infância e início da adolescência. Aqui, então, levarei em conta a sala de estar e nosso quarto, na Tijuca (Rio de Janeiro), como duas “salas de exibição”, apenas para efeito de apontar experiências e vivências, sabendo das distinções entre assistir filmes em casa e assistir filmes em salas de cinemas (e das distinções entre salas de cinema entre si, em suas diversas possíveis categorizações de espaços). Para listar de forma direta alguns filmes mais ou menos óbvios que assisti pela TV durante a infância, nas faixas de filmes da Globo e do SBT, me marcaram: a trilogia Karate Kid; 3 Ninjas (éramos “hipnotizados” por esse filme, de forma muito profunda); Os Caça-Fantasmas (ainda sinto medo do quadro amaldiçoado naquele museu); Christine, o Carro Assassino; O Mistério de Robin Hood, A Princesa Xuxa e os Trapalhões, Os Trapalhões na Terra dos Monstros, Os Trapalhões e a Árvore da Juventude; Super Xuxa Contra o Baixo Astral”, Lua de Cristal; O Ataque dos Vermes Malditos; Gremlins; Robocop (imagens dentro de imagens; o filme na TV; a TV dentro do filme; telas e memórias; memória e humanidade; imagem e violência; imagem e afeto). E ainda, na Bandeirantes ou na TV Manchete, não lembro, mas, lá, toda a gama de heróis japoneses seriados, isso antes mesmo do apartamento na Tijuca, ainda morando em outro lado do Maracanã. Guardo também na memória as tardes assistindo séries da Sony Entertainment Television, com minha mãe.



Aqui, caso este fosse um texto acadêmico, valeria a indicação de leitura de um livro talvez já datado academicamente, mas que li quando fiz minha pós-graduação, e que acho que cabe como um ponto de inflexão e reflexão: “Understanding Popular Culture”, de John Fiske. E lembrando dos textos desse livro, penso que seria interessante contextualizar “sala de estar” e “quarto” num contexto de anos 1990/início dos anos 2000 de classe média/classe média alta (?) no Rio de Janeiro. Penso em descrever meu quarto (beliches, eu e meu irmão, às vezes meu primo, às vezes um amigo, às vezes todos nós; TVs que variaram com os anos, de pequenas a maiores, mas, sempre lá; videogames, consoles: SNES, Nintendo 64, por muito tempo; e de 1998/1999 para frente, um computador) e a sala de estar (apartamento, TVs que variaram com os anos; um computador; sofá/sofás; sala de estar/sala de jantar). Duas salas de cinema? Não. Dois espaços para assistir filmes e séries? Sim. Dois lugares de cinema. De audiovisual. E então, videogames. Muitas vezes me vi envolvido em suas narrativas e em suas estéticas e em suas emoções. Por isso, listo aqui, também, alguns jogos. Da adolescência, A Maldição da Ilha dos Macacos e The Dig. Durante a pandemia, no console emulador Bittboy, joguei, do início ao fim: The Legend of Zelda: The Minish Cap, Crystalis, The Guardian Legend, Golden Axe Warrior e Sorcerer's Kingdom. Lembro de Eduardo Toledo. Em conversas com Mateus Nagime, em 2012/13, costumávamos nos perguntar, brincando: “Gif é cinema?”[3].



Quando penso em salas de cinema, agora, as primeiras que surgem, de imediato, são: a sala do Museu Lasar Segall (nas redondezas, São Paulo, Vila Mariana, caminhada agradável); o cinema Odeon (Cinelândia, o único que restou funcionando, Rio de Janeiro, onde beijei pela primeira vez a Natália); o Parisiense dos anos 1910 (nunca entrei, hoje Teatro Glauce Rocha, estudei sobre e vi fotos); o Íris dos anos 1910 (nunca entrei, hoje cinema pornô, gosto da lembrança dele em seu auge, na rua da Carioca, Rio de Janeiro, do qual conheço apenas fotos e a fachada passando de ônibus); o Cine Lapa (do qual pouco sei sobre o período em que foi cinema, nos anos 2000 foi boate, fui uma vez); a sala de cinema do Centro Cultural Banco do Brasil, Rio de Janeiro; o já citado cinema do Shopping Iguatemi. Durante o mestrado eu gostava de comer yakisoba olhando para o que havia ainda de conservado do sobrado onde um dia funcionou o cinema Modelo, no bairro do Riachuelo. Indicado no sobrado o ano de sua construção, 1907. A obviedade do tempo. Pesquisando, imaginei ir a muitos cinemas do Rio de Janeiro dos anos 1910 e 1920. Uma pesquisa interessante seria mapear os espaços adjacentes às salas de cinema de uma cidade, Rio de Janeiro, São Paulo, no passado do cinema, quando o cinema tinha uma força ímpar no imaginário coletivo (mapear os recortes desse “coletivo”), anos 1910-1950, mapear onde alguém poderia tomar um café antes ou depois de uma sessão. Tomar um sorvete. Mapear os caminhos que levavam até as salas do centro. Os caminhos que levavam até os cinemas de bairro. Quais estabelecimentos comerciais existiam naquele raio, durante a existência daquele cinema. Mapear caminhos e diálogos. Um exercício de imaginar experiências cotidianas. Escrever a história do cinema a partir “de baixo”[4]. Em algum momento, nos anos 1910 ou 1920, existiu no Rio um restaurante “Tom Mix”. As salas de cinema no contexto geral e específico de uma cidade. No contexto geográfico urbano (?).

Também num recorte geracional, nessa relação com a televisão, acho interessante apontar aqui que, em algum momento da minha vida, se me perguntassem o meu filme favorito, minha resposta seria uma série, Arquivo X, e não um filme. É hoje difícil falar de cinema sem falar de séries de televisão. E mesmo séries de televisão tomaram outros rumos, com o surgimento das telas de computador e de celular, muitas telas, em diversos tamanhos. E a noção de TV também mudou, saindo da programação linear para os catálogos dos serviços de streaming. A experiência de assistir filmes e séries em casa se aproximou mais da experiência das locadoras de vídeo, e se distanciou da experiência da TV aberta e mesmo da TV por assinatura. Tudo isso são obviedades. Mas existe, então, um movimento maior de curadoria, ou de escolha, por parte do “cliente”, na experiência de assistir audiovisual por meio dos catálogos dos serviços de streaming? Existe uma limitação bastante óbvia, isso é fácil de constatar. Em um sentido de escolha mais amplo, existe o mundo de possibilidades de títulos de filmes e séries para download. The Pirate Bay & Cia. Mapear, escolher, vasculhar, baixar. É um leque ainda mais amplo que os das melhores locadoras de vídeo. Fui sócio da 142 Vídeo, que ficava na rua Mariz e Barros, na Tijuca, e da Vídeo Estação, em Botafogo. Essas duas locadoras foram muito importantes durante a minha graduação. É também uma experiência que se perdeu. Havia um ritual envolvido ali. Sempre há um ritual envolvido. No caso do Vídeo Estação a experiência tinha ainda o extra de ser uma locadora localizada em um cinema, e não em um cinema qualquer, mas no Estação Botafogo, na Voluntários. Quando penso em cinema, o Vídeo Estação é um dos pontos que surgem em minha mente. Sobre as séries de televisão, para além de “Arquivo X”, cito: Além da Imaginação (as temporadas originais dos anos 1950-1960); uma série sobre um detetive paranormal chamado Harry, que esqueci o nome no momento em que escrevo, dos anos 2000, teve apenas uma temporada, sem renovação; e, não lembrando de outras, pulo para Prisma, série italiana, a mais envolvente produção audiovisual dos anos 2020 (isso num âmbito muito pessoal a partir de tudo que imaginei que seria o cinema que eu faria, durante a faculdade, quando eu ainda pretendia fazer filmes, ou imaginava que os faria; essa série se aproxima muito daquilo que eu imaginava que seria esse meu cinema).



Durante alguns anos, além da lista de filmes que assisti em salas de cinema, eu mantive outras listas: lista de todos os filmes que assisti e gostei; lista de todos os jogos que joguei e gostei; lista de filmes e séries para assistir (uma lista para lembrar daquilo que eu gostaria de assistir um dia). Essas listas respeitavam organizações específicas e próprias, indicadas sempre em um texto introdutório. Deixei de alimentar essas listas antes da pandemia. A lista de filmes e séries para assistir somava algo em torno de 4 mil títulos, talvez. Essa lista era mais sobre listar do que sobre assistir. Listar era também uma atividade por si. Já da lista com os filmes que eu já havia assistido, servia como um diário. O título dessa lista, lembrando agora, era Diário de Bordo. Era uma lista de títulos, sem maiores indicações de datas ou contextos. Ali estava tudo que assisti e gostei. Não era uma lista de favoritos, mas uma lista de tudo que me agradou, em algum nível. Uma lista bengala para a memória. Era também, como o próprio texto de introdução dizia, “uma garrafa jogada no mar do tempo”, para ser encontrada no futuro por Maria e Pedro. E por mim, sempre que eu quisesse. Mas desde que abandonei essas listas, não as consultei mais. Lembro de trabalhar na Cinemateca do MAM, no estágio que fiz indexando a biblioteca da cinemateca, com uma aba aberta no navegador da internet com a listagem de filmes para assistir sendo alimentada a cada título interessante que passava por mim nas páginas dos livros que eu catalogava. Em um período específico quis muito conhecer os filmes de Bollywood, assisti alguns, que entram hoje em minhas listas imaginárias de filmes favoritos. Também dediquei alguns anos em mapeamentos do cinema silencioso, sobretudo dos filmes produzidos nos Estados Unidos, e na nascente Hollywood. Do meu Diário de Bordo, organizado por ano de produção dos filmes, as primeiras três páginas, com aproximadamente 150 filmes, traziam filmes do período silencioso, do início do cinema até a virada para os anos 1930. Assisti a muitos desses filmes em casa, de noite, deitado na cama, pelo monitor do computador, com o som desligado, enquanto todo o restante da casa dormia. Outros, assisti em Pordenone, no Teatro Verdi, durante a Giornate del Cinema Muto, em 2012. Outros, quando eu já não alimentava mais as minhas listas, assisti em Bolonha, em 35mm, na sala Scorsese ou na sala Lumière, da Cinetecadi Bologna, em 2022. Tive, ainda, em 2019, a oportunidade de exibir filmes silenciosos em sessões mensais na Cinematecado MAM, com uma sessão especial no cinema Odeon. O recorte foram filmes produzidos em Hollywood. Eram programas organizados por mim e por Drika de Oliveira para nosso cineclube, Retrolâmpago de Amor Visual. Os pontos altos foram a sessão com um drama protagonizado por Greta Garbo e John Gilbert (?), com acompanhamento de piano executado ao vivo por Cadu Pereira; e a sessão de Aurora, de Murnau, que tecnicamente não é um filme silencioso (primeiro filme com pista Movietone?). Essa sessão foi introduzida por Hernani Heffner, e após o filme, um debate bastante ousado (?) foi iniciado por Eduardo Toledo, debate esse que depois foi continuado na página do cineclube no Facebook. Destaco também a sessão no Odeon de When Knighthood was in Flower, protagonizado por Marion Davies. No YouTube ainda é possível encontrar algumas gravações introdutórias que exibimos em sessões do cineclube em 2019. Em 2020, a ideia era o cineclube se concentrar mais no Estação Botafogo, com exibição de filmes silenciosos brasileiros de ficção. A primeira sessão foi em fevereiro, com os dois filmes sobreviventes de José Medina (Exemplo Regenerador, Fragmentos da Vida). Fiz o acompanhamento musical dessa sessão, usando um laptop emprestado, improvisando por cima de algumas gravações. A sessão de março foi Aitaré da Praia, na Cinemateca do MAM, que dediquei a Luciana Corrêa de Araújo. A terceira seria Limite, na Sala 1, no Estação, em abril, apresentada por Cacá Diegues e Saulo Pereira de Mello. Mas veio a pandemia. A sessão não aconteceu. A pandemia paralisou o cineclube. E levou Saulo. O cineclube não retomou suas atividades.

De outras sessões marcantes, da época da faculdade para cá, posso destacar, numa linha direta, mas tortuosa: Tio Boonmee, Que Pode Recordar Suas Vidas Passadas, que assisti com Natália, em Botafogo, no Estação Rio ou no Espaço Itaú (saí muito empolgado do cinema, conversando com Natália; eu já havia estudado e debatido o filme mesmo antes de assisti-lo pela primeira vez, por conta das discussões e análises da disciplina “Roteiro II”, ministrada por José Carvalho; aquele era, também, um cinema que eu e meus amigos de faculdade queríamos praticar um dia, em breve, em nossos filmes - entre esses amigos, Victor Hugo Fiuza, Rodrigo Ferdinand e Caíque Mello Rocha); Depois do Vendaval, de John Ford (diretor favorito da maioria de nós àquela altura), e A Viagem do Balão Vermelho, de Hou Hsiao-Hsien, ambas as sessões na sala de cinema do andar térreo do CCBB do Rio de Janeiro, sessões essas em dias distintos, em mostras obviamente distintas, mas que na minha memória e na minha vivência ocorreram num mesmo momento de êxtase da geração formada em cinema pela PUC-Rio, jovens que ingressaram no curso entre 2005 e 2009, primeiras levas da habilitação em cinema naquela universidade, um grupo que de forma inegável esteve organizado em torno da influência de Hernani Heffner, e de forma mais ou menos direta, em torno do cineclube CinePUC, realizado então na sala 102-K, edifício John Kennedy; aproveitando a lembrança do CinePUC, outra sessão que ficou marcada em minha memória: Gerry, de Gus Van Sant, na 102-K (outro exemplar do cinema que queríamos fazer; e outro exemplar de “sala de cinema” que não era sala de cinema, mas que vivi um pouco como se fosse, ou fingindo que fosse); ainda na 102-K, Os Famosos e os Duendes da Morte, de Esmir Filho, exibido em aula por Hernani Heffner, minha última aula com Hernani durante a graduação, num clima místico de despedida provisória (naquela aula Hernani apontava, direta e indiretamente, para certa “impossibilidade” de levarmos adiante o cinema que talvez estivéssemos buscando para nós enquanto geração; eu já havia assistido o filme de Esmir Filho duas vezes antes dessa aula, uma vez sozinho, no Estação Botafogo, outra vez com Victor Hugo e Mariana, no então Estação Laura Alvim); “Limite”, em sessão fechada na Cinemateca doMAM, com os outros estagiários do projeto de organização da biblioteca, em 2013, acompanhados por Fabricio Felice, nosso chefe no projeto, e Hernani; um filme silencioso indiano do qual não me recordo o nome, em uma das salas de exibição da Cineteca di Bologna, em 2022, com a trilha musical mais impressionante que já vi se encaixar com imagens em um filme (era a trilha composta para a versão restaurada do filme, que constava no próprio vídeo, e não um acompanhamento musical ao vivo daquela sessão em específico); O Atalante, de Jean Vigo, no Cine Vila Rica, em 2018 ou 2019, outra sessão de catarse, acompanhado de amigos do CTAv e da Cinemateca Brasileira, durante a Mostra de Cinema de Ouro Preto; Chico Xavier, possivelmente no São Luiz, no Largo do Machado, ou no Roxy, em Copacabana, a sessão mais cheia que já presenciei em uma sala de cinema (perdendo talvez apenas para algumas sessões ao ar livre na Piazza Maggiore durante o Cinema Ritrovato, em Bolonha, em 2022); Feliz Natal, do Selton Mello, que assisti duas vezes, a primeira no Estação Gávea, acho que durante o Festival do Rio; Ladrões de Cinema, de Fernando Coni Campos, no cineclube Sessão Corsário, em sessão da qual me lembro muito pouco, mas que ficou marcada em mim de maneira tão difusa que eu guardei a sensação da memória confusa; se não me engano, essa sessão aconteceu no auditório de uma faculdade de Direito em Botafogo, mas não me recordo bem; uma sessão com filmes de Segundo de Chomón, na Cinemateca do MAM, em um fim de semana - na sala, somente eu, Natália, e um senhor, bem velhinho, que dormia; Operação Big Hero, no cinema do Botafogo Praia Shopping, primeira sessão de filme de longa metragem da Maria; Five Nights at Freddy’s, no cinema do Shopping Metrô Santa Cruz, a sessão mais anárquica em que já estive, com Maria e amigos dela do colégio, numa catarse infanto-juvenil que nenhum crítico sério e sem visão poderia abarcar em textos tolos (o poder do filme estava ali, naquela catarse, naquela anarquia na sala de cinema, texto, contexto e intertexto, diegese e exegese); Nostalgia, versão restaurada do filme de Tarkovsky, no Cinema Europa, Via Pietralata, Bolonha, com colegas da FIAF Film Restoration Summer School (todos nós já tínhamos assistido o filme antes, uma ou mais vezes, em outras ocasiões, em nossas vidas; nenhum de nós gostou do filme tanto quanto nós lembrávamos de ter gostado quando assistimos pela primeira vez ou primeiras vezes, mais jovens); Solaris, Tarkovsky, em 35mm, cópia muito bonita, no Instituto Moreira Salles, Rio de Janeiro, quando entendi o filme pela primeira vez, com legendas que faziam sentido, ao contrário das legendas do DVD da Continental, com tradução muito estranha; Uma Aventura aos 40, numa sessão no CCBB, Rio de Janeiro, lembro pouco do filme, mas foi a segunda vez que saí com Natália (primeira filme brasileiro em que aparece uma televisão, lembro disso; acho que era na mostra Clássicos e Raros do Cinema Brasileiro, algo assim, se não me engano, curadoria do Remier Lion, que talvez não saiba, mas influenciou minha geração - gosto de pensar em termos geracionais); Super 8, um filme sobre fazer filmes, um filme de ficção científica muito influenciado por Spielberg sobre fazer filmes - assisti com Natália, talvez no cinema do Shopping Tijuca; lembro que na faculdade, em aula do Arturo Netto, ele mencionou que ali, por volta de 2011, o cinema do Shopping Tijuca, as salas do Kinoplex do Shopping Tijuca, eram as salas com a maior frequência de público de todos os cinemas do Rio de Janeiro; gosto do grande saguão desse Kinoplex, tento achar nele indícios de continuidades com os saguões dos cinemas do passado e sua estética e disposição de cartazes e papelões recortados anunciando filmes.



Para um estudo geracional infundado talvez, eu imaginei enviar este texto para todos os que se formaram em Cinema & Correlatos entre 2005 e 2015 aproximadamente, num grande chute nada científico, para buscar mapear alguma tendência. Ou para os estudantes de cinema nascidos entre 1980 e 1995, a Geração do Milênio. Fazer a partir desses textos uma grande compilação. E tentar mapear algo nisso. Entender algo a partir disso. Buscar alguma unidade a partir desses relatos, com o mero intuito de encontrar traços geracionais que possam nos unir enquanto… geração. Lembro que Victor Hugo tentou algo assim com seu projeto de documentário durante a faculdade. Nunca assisti esse documentário. Eu e Eduardo muitas vezes falamos sobre escrever certa História não contada da preservação audiovisual no Brasil a partir de 2012, mas nunca paramos para fazê-lo. Tamara pensa em entrevistar a velha guarda da Cinemateca Brasileira, para que possamos entender melhor quem somos. Gosto muito da ideia. Talvez um traço de nossa geração seja esse desejo de nos situarmos dentro da história, das histórias e da História. Fazemos parte da História. Para fechar de maneira a imitar os textos acadêmicos que terminam em desejos, espero que este pequeno texto possa ser o início de alguma coisa (no sentido de ser um primeiro movimento meu em direção a algo mais coeso e organizado em termos de escrita). Sobretudo, algo mais coeso em destrinchar, de maneira mais pormenorizada e específica, o quanto as vivências daqueles que trabalham com preservação audiovisual estão imbricadas em uma teia de constante absorção de imagens, o quanto essa relação com as imagens é profunda, e o quanto ela influencia a nossa relação com o audiovisual enquanto consumidores de imagens. Esse não é o ponto neste breve ensaio, mas, para mim, como eu já havia apontado no início deste texto, não é possível dimensionar de forma mais aprofundada minha relação com o audiovisual sem aprofundar o papel formador dos arquivos de filmes nessa relação. Quando penso em cinema, penso ao mesmo tempo em cinemateca.


[1] Sob influência das ideias apresentadas no livro “Film Curatorship: Archives, Museums, and the Digital Marketplace”.

[2] Hoje Shopping Boulevard, em Vila Isabel, Rio de Janeiro.

[3] Pensando em audiovisual hoje, penso que caberiam em listas os vídeos do YouTube e os vídeos feitos para o TikTok. Vídeos esses, em vários âmbitos, em muitos casos, experimentais. O cinema mais experimental do século XXI está na Internet.

[4] Ver as propostas de Richard Maltby nesse sentido.

Foto dos cines Carioca e América: Ignácio Ferreira - 23/10/1989

CINEMATECA BRASILEIRA - FOLHETOS DE SALAS

CINEMATECA BRASILEIRA - PERIÓDICOS DE CINEMA

ACESSE O BANCO DE DADOS


BIBLIOGRAFIA DO SITE

PRINCIPAIS FONTES DE PESQUISA

1. Arquivos institucionais e privados

Bibliotecas da Cinemateca Brasileira, FAAP - Fundação Armando Alvares Penteado e Faculdade de Arquitetura e Urbanismo - Mackenzie.

2. Principais publicações

Acervo digital dos jornais Correio de São Paulo, Correio Paulistano, O Estado de S.Paulo e Folha de S.Paulo.

Acervo digital dos periódicos A Cigarra, Cine-Reporter e Cinearte.

Site Arquivo Histórico de São Paulo - Inventário dos Espaços de Sociabilidade Cinematográfica na Cidade de São Paulo: 1895-1929, de José Inácio de Melo Souza.

Periódico Acrópole (1938 a 1971)

Livro Salões, Circos e Cinemas de São Paulo, de Vicente de Paula Araújo - Ed. Perspectiva - 1981

Livro Salas de Cinema em São Paulo, de Inimá Simões - PW/Secretaria Municipal de Cultura/Secretaria de Estado da Cultura - 1990

Site Novo Milênio, de Santos - SP
www.novomilenio.inf.br/santos

FONTES DE IMAGEM

Periódico Acrópole - Fotógrafos: José Moscardi, Leon Liberman, P. C. Scheier e Zanella.

Fotos exclusivas com publicação autorizada no site dos acervos particulares de Joel La Laina Sene, Caio Quintino,
Luiz Carlos Pereira da Silva e Ivany Cury.

PRINCIPAIS COLABORADORES

Luiz Carlos Pereira da Silva e João Luiz Vieira.

OUTRAS FONTES: INDICADAS NAS POSTAGENS.