Artigo da revista Manchete, nº 1136, de 1974.
Reportagem de José Maria dos Santos - Fotos de Iugo Koyama.
Uma ovação digna do Maracanã sacudiu o Cine Caiçara, em Santos, quando um dos formandos da turma de Educação Física da Faculdade local subiu ao palco para receber seu diploma. O bacharel era Pelé. Único rei cuja majestade é reconhecida e reverenciada no mundo inteiro, Pelé, apesar da sua fama, sentou-se modestamente entre os outros 200 colegas, vestindo uma beca verde-escura. O orador da turma fez questão de se referir ao exemplo do seu espírito de disciplina, colocado frequentemente à prova nos gramados e na vida. Enquanto a multidão se acotovelava fora do cinema, à espera de um autógrafo, Pelé garantia que sua escalada universitária estava apenas começando. Depois de bacharelar-se em Educação Física, pretende se inscrever em Administração de Empresas.
A gripe impediu Pelé de comparecer à missa marcada para as 10 horas da manhã, na velha igreja de Embaré, em frente ao mar. Mas o Rei não foi o único a faltar à primeira cerimônia das comemorações dos formandos da Faculdade de Educação Física de Santos. Leão, o técnico Pepe e o atacante Fedato foram outros que não puderam ir à igreja. Desfalcada das duas principais atrações, a turma de 1973 contou apenas com o goleiro Cláudio, do Santos Futebol Clube. Por ser membro atuante da comissão de festas, ele não tinha tempo de dar autógrafo aos curiosos que interrompiam o trânsito na Avenida Presidente Wilson.
O ponto alto das comemorações ficou sendo, então, a colação de grau, à noite, nos salões do Cine Caiçara. Desta vez, todas as atrações estavam presentes. O tráfego ficou congestionado durante horas. Mas a multidão de fãs não se desapontou. Às 20 horas em ponto, Pelé saltou da sua Mercedes, trajando a clássica beca verde-escura dos diplomandos.
Nestes últimos quatro anos, ele se entregou aos livros com a mesma dedicação disciplinada com que joga futebol. Obteve uma frequência surpreendente às aulas, confirmada pelo orador da turma, que lhe dedicou boa parte de seu inflamado discurso. Na oração, foi assinalado o fato de que Pelé sempre chegava à escola às 7 horas da manhã, mesmo quando o Santos havia jogado, na véspera.
O Rei não nega que encontrou certa dificuldade em driblar algumas das 12 materias do currículo. Biologia, por exemplo, foi um problema difícil para ele, que não podia estudar metodicamente. Mas, de qualquer maneira, obteve a média geral de 7. "Não fui um aluno brilhante", diz o jogador, com sua proverbial modéstia.
Mas, segundo seus colegas, as aulas foram muito bem aproveitadas. Na cadeira de Psicologia, Pelé brilhou, sendo convocado, de vez em quando, para fazer palestras à classe, expondo suas experiências no gramado. Numa dessas conferências analisou o tema da motivação psicológica que influiu no campeonato paulista de 1973, quando os jogadores da Portuguesa perderam três pênaltis contra o Santos.
Pelé confessa que, ao entrar na faculdade, não tinha uma idiea precisa do significado da Educação Física: "Eu pensava que se tratava de aprimoramento do físico, mas agora sei que a Educação é um instrumento de cura".
De seus companheiros de estudo diz guardar a melhor das lembranças. No começo, quando ainda estava cursando o primeiro ano, todos o tratavam por Pelé, e muitos lhe pediam autógrafo. Depois, deixaram até de falar em futebol, e o jogador passou a ser aceito e querido como um colega igual aos outros.
"Nem bem saí, ainda e já estou sentindo saudades da escola", diz Pelé.
Ele acha que se beneficiou muito com as conversas, os debates, a descoberta de novos livros. Esse diálogo aberto e essa pesquisa constante aperfeiçoaram o curso mais amplo que o Rei foi obrigado a frequentar na universidade da vida. Pelé considera que suas melhores aulas foram ministradas nas viagens que realizou, em suas experiências esportivas e humanas no meio de povos e países distantes.
"Em 18 anos de futebol, aprendi muito com as pessoas e lugares. Para onde ia, sempre levava livros. Quando a gente é Pelé, recebe desafios que se tem de responder. Por exemplo, já fui várias vezes convidado a tomar chá na Academia Brasileira de Letras. Há oito anos atrás, eu me sentiria deslocado entre os escritores. Agora, acho que me comportaria melhor".
Rose, esposa do Rei, teve papel importante em sua atual escalada universitária. Pelé acha que sua mulher foi sempre mais culta do que ele, e isso o incentivou: "Eu não podia ficar conversando em casa apenas sobre dribles e gols". O fato de Rose viver lendo e estudando é um grande incentivo para ele, embora reconheça que seja bastante duro conciliar os estudos com a atividade nos gramados e os contínuos deslocamentos.
Embora manisfeste uma grande preferência por Fisioterapia e Ludoterapia, Pelé acha que não tem muitas perpectivas de se dedicar a essas disciplinas. Talvez só o faça depois de abandonar o futebol. Por enquanto, pretende voltar a faculdade, desta vez para fazer um curso de Administração de Empresas. Acha que precisa orientar, pessoalmente, seus próprios negócios. E está disposto a envergar a beca outra vez - que, segundo seus fãs, lhe cai tão bem quanto o uniforme do Santos.
Abaixo, o colega de faculdade, o goleiro Leão. Depois, fotos do Cine Caiçara, inaugurado em 15/05/1952, na cidade de Santos.