Por Pedro Cavalcanti e Luciano Delion
Para as gerações criadas com televisão na sala é difícil imaginar o que já foi a aventura de uma ida ao cinema no centro da cidade. Sobretudo a partir dos anos vinte, quando do tão sonhado “casamento entre o projetor e a vitrola” surgiu o cinema falado.
Ainda que assistir o filme fosse a parte fundamental, absolutamente não esgotava o programa. Este incluía encontros com amigos, conversas na fila, exibição de elegância e namoros à distância, os únicos permitidos. Foi assim desde os tempos do velho cine Central em frente ao Correios, onde os filmes eram mudos, mas os espelhos da sala de espera permitiam trocas de olhares, os mais significativos, como recorda Yolanda Penteado (1903-1983 - uma das pessoas mais ricas e influentes dos anos 40, 50 e 60), assídua freqüentadora nos seus tempos de mocinha.
Nesse tempo, as salas de exibição eram teatros adaptados, ainda com balcões, camarotes e frisas dispostos em forma de ferradura, como no Santa Helena, na Praça da Sé, ou no Dom Pedro II, no Anhangabaú. Vieram depois os verdadeiros palácios, com milhares de lugares, onde o espectador sentia-se parte do espetáculo. Essa mudança se iniciou em 1929, com o Paramount na Av. Brigadeiro Luiz Antonio e o cine Rosário, no prédio Martinelli, com paredes revestidas de mármore de Carrara. Coisa nunca vista, oferecia poltronas estofadas.
O UFA-Palácio já em 1936 e o Metro em 1938, ambos na Av. São João, inauguraram o espaço da chamada Cinelândia que, além da própria São João, incluía o Largo do Paissandú, o Santa Ifigênia e a Av. Ipiranga. O UFA, projetado pelo arquiteto Rino Levi foi um caso à parte com suas linhas sóbrias. Já o Metro e a maioria dos que surgiram no seu rastro acompanhavam a arquitetura e a decoração dos cenários de Hollywood, alternando alegremente construções em estilo mourisco com o neoclássico afrancesado e incluindo cópias de estátuas, fontes murmurantes e arco-íris luminosos que se refletiam em espelhos.
Sugeridos pelas produtoras americanas, os nomes lembram exotismos suntuosos e monumentais. São os mesmos que começavam a brilhar em todas as grandes avenidas do mundo: Rex, Roxy, Capitólio, Imperial, Alhambra, Plaza, Odeon, Art-Palácio, Opera, Babylonia, Ritz. Exceção nacionalista apenas no nome, o Ipiranga surgiu para arrasar a concorrência com seu slogan “Um Monumento ao Cinema”. E realmente não parecia outra coisa. Inimá Simões, autor do livro “Salas de Cinema em São Paulo”, descreve: “O filme que bate na tela e a sala de projeção estão em plena harmonia, formam quase que uma coisa única, uma união consensual. (...) O Espetáculo começava já na calçada, muito antes da platéia ser escurecida, e é bastante provável que os freqüentadores vissem apenas uma parte do que acontecia no filme, livrando um olho para acompanhar a atmosfera de encantamento. (...) Quando alguém diz que viu ‘Seis Destinos’ não vem à cabeça o nome do diretor Julien Duvivier, mas sim uma constatação: Ah, esteve no Ipiranga!”.
Essa fantasia inocente de considerar o prédio do cinema como parte do filme teve seu momento de glória em 1954, durante o Festival Internacional de Cinema que marcou o quarto centenário da cidade. Pessoas que só existiam nos filmes materializaram-se subitamente na sessão de gala do cine Marrocos. Lá estavam, entre outros, Ronda Fleming, Erich Von Stronheim, Fred Mac Murray, Edward G. Robinson, Jeannette MacDonald e Michel Simon. E, sobretudo, lá estava, caminhando sobre o tapete vermelho da escadaria de entrada, como no tombadilho de um navio, o grande Errol Flynn, mais conhecido na vida das telas como Capitão Blood, Robin Hood, ou O Gavião do Mar.
No dia 25 de janeiro de 1954, enquanto uma garoa brilhante feita de triângulos de papel prateado caía sobre a cidade celebrando o quarto centenário de sua fundação, o Centro entrava em longo período de decadência. O comércio, os escritórios de luxo, o dinheiro mudavam-se para os outros bairros da “cidade que mais cresce no mundo”.
Apenas agora, depois de mais de meio século de esquecimento, o Centro começa a acordar de novo. Em rara conjugação dos poderes públicos com a iniciativa privada impulsionada pela Associação Viva o Centro, prédios são restaurados (como, por exemplo, os cines Olido e Marabá), repartições públicas voltam a antigos endereços e o comércio procura soluções de renovação.
Há tantos fatores em jogo que, para muitos, a tarefa parece impossível. Talvez não seja. Muito já foi realizado e muito se planeja. O essencial está em preservar a força daquela ligação emocional com a cidade, presente no coração de todos os que conheceram São Paulo no tempo de sua juventude. Ouvia-se, então, a propósito de tudo, uma exclamação que, segundo a entonação, podia exprimir alegria, ou tristeza, desalento, ou entusiasmo, e cujo significado profundo só os paulistanos mais antigos conhecem: “Eh! São Paulo!”
Ilustrei esta postagem com fotos do cine Ipiranga, da época de sua inauguração. É o cinema do Centro que eu mais gostaria que voltasse a funcionar. Ele poderia ser todo restaurado. Sua arquitetura foi assinada por Rino Levi e é de grande valor histórico. Veja texto sobre Rino Levi neste blog. - Antonio Ricardo Soriano
Texto do livro “São Paulo - A Juventude do Centro”, de Pedro Cavalcanti e Luciano Delion - Grifo Projetos Históricos e Editoriais - 2004