O que restou dos templos da sétima arte do Centro de São Paulo
Por Roberto Gabler Forni (Engenheiro Químico e Cinéfilo)
Na década de 70, quando as compras eram feitas na loja de departamentos Mappin e o Playcenter era o parque de diversões dos sonhos das crianças paulistanas de classe média, meus pais me levaram ao cinema para assistir “Superman - O Filme” (1978), de Richard Donner, com Christopher Reeve. A primeira vez não podia ter sido melhor: a sala de cinema possuía não uma, nem duas, mas sim, três telas. Era o Cinespacial, na Avenida São João. Seu interior fazia jus a seu nome: lembrava o interior de um disco voador. A casa estava cheia: tivemos que nos sentar em alguns degraus que havia no local por falta de assentos livres. Mesmo assim, foi o máximo! Fazia parte, pois o espetáculo compensava o pequeno desconforto. Defronte ao Cinespacial, segundo o letreiro com um comprimento igual ao da fachada, estava sendo exibido no cine Comodoro, o filme “Grease - Nos Tempos da Brilhantina” (1978), musical com John Travolta e Olívia Newton-John, na única sala dotada do sistema Cinerama de projeção da cidade (tela côncava e película em 70 mm). Daí em diante, não parei mais de frequentar os cinemas do Centro.
Concentrados, a maior parte, na região entre o Largo do Paissandu e o Elevado Costa e Silva (conhecido como “Minhocão”), lá se encontravam também as salas mais convencionais, como os cines Regina, Olido, Marabá, Ipiranga, Paissandú, entre outras. Algumas delas fizeram parte de momentos históricos ou curiosos. O cine Art Palácio, por exemplo, chamava-se originalmente UFA-Palácio. Inaugurado em 1936, ano da passagem do dirigível Hidenburg por São Paulo, foi construído especialmente para divulgar material de propaganda nazi-fascista. UFA era o nome de um estúdio de cinema subsidiado pelo governo alemão na década de 30. Já o cine Paissandú foi usado, recentemente, como cenário para uma sequência do filme brasileiro “Tapete Vermelho” (2006), com Matheus Nachtergaele.
Entre os anos 80 e 90, eu mal esperava para chegar o fim-de-semana, para comprar o jornal e ver a programação de filmes que estavam sendo exibidos, escolhia um, pegava o ônibus Vila Mirante-Praça Ramos e, tão fanático quanto um católico praticante que vai à igreja, ia ao cinema. Até os rituais eram indispensáveis: o “sinal-da-cruz” na sala de espera era dar uma olhada nos pôsteres dos filmes a serem exibidos “em breve”, a “oferenda” era o trocado deixado na bilheteria para a compra da entrada (que, na época não passava do equivalente a R$ 5,00) e a “hóstia” era a pipoca. “Ficar de pé para ouvir o sacerdote” era fazer silêncio quando as luzes da sala de exibição se apagavam. E neste momento, no ”altar” que era aquela grande tela branca, “versículos” na forma de documentários do Primo Carbonari e trailers nos preparavam para mais uma experiência “divina”. Essa experiência poderia ser voar como um super-herói, viajar para mundos fantásticos, participar de incríveis perseguições de carros, apavorar-se com monstros ou alienígenas, ficar aliviado com a morte do vilão, desvendar mistérios, rir, chorar... enfim, todas as emoções proporcionadas pela sequência de imagens registradas em legítimas películas de longas-metragens. Tal qual um “transe espiritual”, a “adoração” à Sétima Arte era feita em “templos” construídos especialmente para nos introduzir num mundo diferente, o da imaginação.
Mas, com as inovações tecnológicas, vieram também as mudanças dos hábitos culturais. Essas mudanças, que haviam começado timidamente em meados do século passado com a chegada da televisão, foram impulsionadas nos anos 80 pelos videocassetes e o “entretenimento doméstico” começou a predominar no lazer dos paulistanos, juntamente com os videogames, que podiam ser alugados em videolocadoras bem ali, pertinho de casa. E as salas de cinema do Centro, da época de glamour de outros tempos, que já exibiram desde “chanchadas” nacionais a grandes produções hollywoodianas, foram aos poucos sendo esquecidas. A queda na bilheteria diminuía as verbas para a manutenção e estado geral de conservação, refletindo na falta de conforto que acabava por afugentar até os frequentadores mais fiéis como eu. E para agravar ainda mais a situação, a região do entorno da avenida São João passou a se degradar com a maior incidência de traficantes de drogas, moradores de rua, pedintes e prostitutas. Os cinemas acabaram, na maioria, fechando suas portas, ou cedendo seus espaços para templos evangélicos, bingos, estacionamentos e outros. As salas que se mantiveram abertas exibem apenas filmes pornográficos e são usadas por prostitutas e homossexuais para programas.
Hoje, as lojas de departamentos foram substituídas pelos shoppings centers e hipermercados, os “templos do consumo”. Quem iria a um local sem vaga para estacionar o carro como o Centro, se o shopping oferece vagas cobertas e seguras? Quem iria a um local perigoso e com marginais, se o shopping possui seguranças e câmeras de vigilância? Quem iria a um local feio e sujo, se o shopping possui vitrines iluminadas, bancos e banheiros limpos? Que mãe levaria as crianças ao Playcenter, se o shopping possui mini-parques de diversão para elas deixarem as crianças com os pais enquanto procuram aquela bolsa chique? Assim, as salas de cinema migraram para o interior desses grandes centros comerciais, tornando-se parte de um local de convivência e lazer. Pode-se passar um dia inteiro neste local, pois nele possui até praça de alimentação para as refeições. Mas essa mudança tem uma desvantagem: quando antes uma família com até três filhos não gastava mais que R$ 15,00 em uma tarde no cinema do Centro (pois as crianças pagavam meia-entrada), hoje essa mesma família não gasta menos que R$ 60,00, somando o valor do estacionamento, das entradas do cinema (que hoje não sai por menos de R$ 15,00 a inteira), da pipoca e das refeições. Se incluirmos o valor das inevitáveis compras de roupas ou acessórios, sem falar nos eletrodomésticos, e ainda o sorvete, os brinquedos e as fichas nos mini-parques de diversão para os filhos, o gasto em uma tarde num shopping center de São Paulo pode passar dos R$ 500,00.
O “entretenimento doméstico” continuou evoluindo. As TV´s a cabo e por satélite chegam ao Brasil, as fitas em VHS são substituídas pelos discos de DVD ou por vídeos na internet , os televisores com LCD possuem maior resolução que aqueles velhos aparelhos com tubos e agora a grande novidade é o sistema digital, ou “HDTV”. Mesmo que o cristal líquido ou as telas com maior quantidade de pixels por centímetro quadrado consigam ter um impacto semelhante ao do celulóide da película cinematográfica, ou que se instalem caixas acústicas na sala de casa, a magia do cinema é inigualável. A sala de exibição é escura, para que a única coisa que exista naqueles breves noventa ou cento e vinte minutos seja um mundo fantástico visto por aquela janela chamada “imagem em movimento projetada na tela”.
Um filme é uma obra de arte, que deve ser exposta em um espaço especial. Uma pintura valiosa geralmente é apresentada em uma galeria, a menos que um colecionador milionário possa adquiri-lo e pendurá-lo na parede de casa, o que, neste caso, torna a sua apreciação menos pública. Nem todo mundo pode ter um Rembrandt em casa. Por outro lado, “Casablanca” geralmente é exibido na sessão coruja ou num horário menos nobre que o “Big Brother”, tamanha é a banalização desta obra de arte. Um religioso praticante que assiste ao culto num templo renova sua fé de forma mais intensa que alguém que têm apenas uma imagem colocada na estante perto da televisão.
O novo cine Marabá totalmente retaurado e reformado
Porém, para a felicidade dos fãs das velhas salas de cinema do Centro, a boa notícia é que o cine Marabá (na Avenida Ipiranga), que esteve fechado desde 2007, teve cinco salas reabertas em maio deste ano, tendo sido totalmente reformado, graças à exibidora Playarte. É uma boa notícia. O que é bom pode ser melhorado, mas nunca esquecido!