Por Igor Andrade Pontes - Pesquisador na Cinemateca Brasileira.
Este ensaio talvez escape do intuito do convite
inicial de Soriano, mas, é uma oportunidade de concretizar, ou de saciar, em
parte, algo que venho a muito querendo organizar: algumas palavras sobre certa
relação com a imagem, num âmbito bastante pessoal . Aqui,
falha, ou pode ser falha, outra relação, essa menos apaixonada, que é a minha
relação com a escrita (que não deixa de ser apaixonada, mas que se mostra às
vezes uma relação de desconfiança e rupturas, de ridículo, de vontade, desvontades, insistências e
desistências, a depender do perfil do texto. Aqui adotarei o modo que gosto de
escrever, ou que escrevo sempre que me é permitido: em fluxo de pensamento, sem
grandes amarras).
As vivências aqui escritas envolvem diferentes cidades: Rio de Janeiro (sobretudo), São Paulo, Vitória, Ouro Preto, Pordenone e Bolonha. Este ensaio aponta para certa vontade de contribuir, de compartilhar ideias e experiências (lembro da fala de Luisa Malzoni, colega da Cinemateca Brasileira, sobre essa ânsia em compartilhar experiências, quando do lançamento de seu livro no âmbito do Projeto Nitratos). Assim, este ensaio é também uma busca por concatenar tudo o que surgir durante sua escrita. É um exercício de redação, e é um exercício de memória, e é um exercício de curadoria [1]. Um exercício falho, óbvio, contraditório e incoerente. É uma tentativa falha e tosca de traçar algum caminho retrospectivo. O texto aqui desenvolvido é escrito sob a influência das minhas experiências enquanto estudante de cinema, na PUC-Rio e na UFF, e enquanto técnico em preservação audiovisual (CTAv), catalogador (CTAv, Cinemateca do MAM, Cinemateca Brasileira) e programador de cineclube (Cinemateca do MAM, Estação Botafogo).
Por algum tempo mantive uma lista de filmes que assisti em salas de cinema. Essa lista continha os parâmetros sobre o que seriam salas de cinema: salas de exibição no geral, de cabines a salas de shopping. Alimentei essa lista entre 2011 e 2018 aproximadamente, e então parei. Nela, eu buscava rememorar e manter atualizada todas as minhas idas ao cinema. Existe um recorte geracional a ser levado em conta como alguém nascido em 1988: em parte, minha relação com salas de cinema é uma relação com salas de cinema de shoppings. O espaço com o cinema do Shopping Iguatemi [2], durante a minha infância, trazia cartazes de filmes dos anos 1930 decorando as portas de cada sala. Aquilo me impactou. Ficou na minha memória. Eu, criança, adolescente, não conhecia aqueles filmes, mas, ainda assim, aquilo me marcou esteticamente. Havia algo ali. Anos depois, pesquisando, descobri quais eram os filmes estampando cada porta de acesso das salas do Iguatemi. Já esqueci quais eram. Lembro vagamente de duas: uma trazia um filme de John Ford; outra, uma comédia com atrizes ruivas. Eu por algum tempo não soube especificar se essa lembrança do design do saguão de entrada do cinema do shopping Iguatemi era mesmo uma lembrança real ou algo que eu havia confundido em minhas memórias. Eu tenho uma vaga lembrança do período em que essa decoração foi trocada, e da minha decepção. A decoração foi trocada talvez por nada. Por portas sem nada nelas.
Dessas memórias de infância, guardei algumas emblemáticas (para mim): uma sessão de “As Tartarugas Ninjas III”, possivelmente com meu pai, possivelmente no Shopping Nova América, em Del Castilho (Rio de Janeiro), nos anos 1990; “Space Jam”, que assisti com meu pai, no Shopping Nova América, minha primeira lembrança de andar de metrô na Linha 2 (o metrô estação Del Castilho deixa o passageiro quase dentro do shopping, até hoje); “101 Dálmatas”, com minha madrinha, não sei em qual sala, e nunca consegui lembrar; “George, O Rei da Floresta”, com Brendan Fraser, em uma das últimas sessões no cinema Carioca, na Praça Saens Peña. Meu pai fez questão de nos levar, eu e meu irmão, com nossa mãe, para essa sessão. Era o crepúsculo mesmo da sala. Últimos momentos antes dela ser fechada, em 2000. Eu estive lá sabendo disso. Com pesquisa, seria possível eu lembrar mais detalhes, mas, usando apenas minha memória, lembro da sensação de vazio e escuridão no saguão de entrada do Carioca naquele dia. E lembro do sentimento de despedida que senti, então com 12 anos. E lembro que o filme era ruim, mas que pra mim, genuinamente, naquele dia, o que importava era a oportunidade de estar naquele lugar pela primeira e última vez. Essa perspectiva, de primeira e última vez, foi sentida por mim naquele dia. Crepuscular. Depois, conversando com meu avô materno, Fernando, soube que ele frequentou muito o Carioca e o América. Quando tive essa conversa com meu avô eu já era um estudante de cinema na PUC-Rio. Ele me contou que assistiu muitos filmes da Atlântida ali, naquele corredor da Rua das Flores. E me contou que uma vez, criança, após um filme de faroeste, ficou na Rua das Flores, na saída do Carioca, aguardando, enganado por seus irmãos, os vaqueiros e os indígenas saírem do cinema, após a sessão. Depois, na pós-graduação, na UFF, ouvi João Luiz Vieira, da geração de meu avô, um pouco mais jovem, contar sobre os valores dos pilares do Carioca, das colunas externas que sustentam a marquise do ex-cinema, agora igreja evangélica. E lembro de João Luiz falando da importância das marquises nas salas de cinema, sobre acolhimento, e sobre proteger das intempéries do tempo, das chuvas, do sol, de acolher, do cinema ser um lugar de acolhimento. Retomando as sessões de cinema de minha infância, ficou marcada, ainda, a vez em que assisti “Hércules”, da Disney, com meu primo, minha prima e minha tia, em algum shopping, mais uma vez, possivelmente o Nova América. Promovendo o filme, no shopping, havia alguém fantasiado de fauno, como o personagem do filme, amigo de Hércules, e tive muito medo daquele personagem andando pelo mundo real; lembro de “O Príncipe do Egito”, que assisti em um cinema de shopping em Vitória, com meu irmão e meus pais (ficou marcada a experiência de ir no cinema durante uma viagem, fora do Rio).
Em 2012, em Pordenone, durante a Giornate del Cinema Muto, em uma reunião do grupo de estudos Collegium, defendi, em discussão com David Robinson, que quando assistimos a um filme, estamos assistindo novamente, ao mesmo tempo, em nossa memória, a todos os filmes aos quais já assistimos até então. Assistir a um filme é como estar diante do Aleph de Borges. Para além das imagens em movimento, existe ainda, nesse Aleph, todo o contextual e o intertextual: nós e nossas experiências, nossas vivências, nossas sensações. Memória. Memórias. Lembranças. Gosto desse paralelo entre o Cinema e o Aleph. Toda a nossa memória. Camadas sobrepostas. Camadas formando uma só camada, sem sobreposições, em uma interação dinâmica e perfeita. Ou perfeita em sua imperfeição. De minha infância, destaco também outro espaço de cinema, a TV. Muitas memórias da relação da minha geração com os filmes são memórias de nossa relação com a TV, sobretudo a TV aberta, e as faixas de programação de filmes da Globo e do SBT. Na Globo, a “Sessão da Tarde”, no SBT, o “Cinema em Casa”. Cinema em casa. Sair de casa para ir ao cinema sempre foi algo importante para mim. Mas assistir filmes em casa, apesar da obviedade já tantas e tantas vezes repetida de se tratar de uma experiência distinta, foi, também, uma experiência formadora. E não penso formação enquanto algo edificador ou intelectualmente “enriquecedor”, mas, experiências formadoras num sentido de gerar vivências, experiências, experiências emocionais e experiências estéticas. Imagens que nos formam e que são por nós formadas. Emoção e cognição. Experiência e estética. Vivenciar. Experimentar. Assisti muitas sessões de filmes em casa pela TV aberta com meu irmão ao longo de nossa infância e início da adolescência. Aqui, então, levarei em conta a sala de estar e nosso quarto, na Tijuca (Rio de Janeiro), como duas “salas de exibição”, apenas para efeito de apontar experiências e vivências, sabendo das distinções entre assistir filmes em casa e assistir filmes em salas de cinemas (e das distinções entre salas de cinema entre si, em suas diversas possíveis categorizações de espaços). Para listar de forma direta alguns filmes mais ou menos óbvios que assisti pela TV durante a infância, nas faixas de filmes da Globo e do SBT, me marcaram: a trilogia “Karate Kid”; “3 Ninjas” (éramos “hipnotizados” por esse filme, de forma muito profunda); “Os Caça-Fantasmas” (ainda sinto medo do quadro amaldiçoado naquele museu); “Christine, o Carro Assassino”; “O Mistério de Robin Hood”, “A Princesa Xuxa e os Trapalhões”, “Os Trapalhões na Terra dos Monstros”, “Os Trapalhões e a Árvore da Juventude”; “Super Xuxa Contra o Baixo Astral”, “Lua de Cristal”; “O Ataque dos Vermes Malditos”; “Gremlins”; “Robocop” (imagens dentro de imagens; o filme na TV; a TV dentro do filme; telas e memórias; memória e humanidade; imagem e violência; imagem e afeto). E ainda, na Bandeirantes ou na TV Manchete, não lembro, mas, lá, toda a gama de heróis japoneses seriados, isso antes mesmo do apartamento na Tijuca, ainda morando em outro lado do Maracanã. Guardo também na memória as tardes assistindo séries da Sony Entertainment Television, com minha mãe.
Aqui, caso este fosse um texto acadêmico, valeria a indicação de leitura de um livro talvez já datado academicamente, mas que li quando fiz minha pós-graduação, e que acho que cabe como um ponto de inflexão e reflexão: “Understanding Popular Culture”, de John Fiske. E lembrando dos textos desse livro, penso que seria interessante contextualizar “sala de estar” e “quarto” num contexto de anos 1990/início dos anos 2000 de classe média/classe média alta (?) no Rio de Janeiro. Penso em descrever meu quarto (beliches, eu e meu irmão, às vezes meu primo, às vezes um amigo, às vezes todos nós; TVs que variaram com os anos, de pequenas a maiores, mas, sempre lá; videogames, consoles: SNES, Nintendo 64, por muito tempo; e de 1998/1999 para frente, um computador) e a sala de estar (apartamento, TVs que variaram com os anos; um computador; sofá/sofás; sala de estar/sala de jantar). Duas salas de cinema? Não. Dois espaços para assistir filmes e séries? Sim. Dois lugares de cinema. De audiovisual. E então, videogames. Muitas vezes me vi envolvido em suas narrativas e em suas estéticas e em suas emoções. Por isso, listo aqui, também, alguns jogos. Da adolescência, “A Maldição da Ilha dos Macacos” e “The Dig”. Durante a pandemia, no console emulador Bittboy, joguei, do início ao fim: “The Legend of Zelda: The Minish Cap”, “Crystalis”, “The Guardian Legend”, “Golden Axe Warrior” e “Sorcerer's Kingdom”. Lembro de Eduardo Toledo. Em conversas com Mateus Nagime, em 2012/13, costumávamos nos perguntar, brincando: “Gif é cinema?”[3].
Quando penso em salas de cinema, agora, as primeiras que surgem, de imediato, são: a sala do Museu Lasar Segall (nas redondezas, São Paulo, Vila Mariana, caminhada agradável); o cinema Odeon (Cinelândia, o único que restou funcionando, Rio de Janeiro, onde beijei pela primeira vez a Natália); o Parisiense dos anos 1910 (nunca entrei, hoje Teatro Glauce Rocha, estudei sobre e vi fotos); o Íris dos anos 1910 (nunca entrei, hoje cinema pornô, gosto da lembrança dele em seu auge, na rua da Carioca, Rio de Janeiro, do qual conheço apenas fotos e a fachada passando de ônibus); o Cine Lapa (do qual pouco sei sobre o período em que foi cinema, nos anos 2000 foi boate, fui uma vez); a sala de cinema do Centro Cultural Banco do Brasil, Rio de Janeiro; o já citado cinema do Shopping Iguatemi. Durante o mestrado eu gostava de comer yakisoba olhando para o que havia ainda de conservado do sobrado onde um dia funcionou o cinema Modelo, no bairro do Riachuelo. Indicado no sobrado o ano de sua construção, 1907. A obviedade do tempo. Pesquisando, imaginei ir a muitos cinemas do Rio de Janeiro dos anos 1910 e 1920. Uma pesquisa interessante seria mapear os espaços adjacentes às salas de cinema de uma cidade, Rio de Janeiro, São Paulo, no passado do cinema, quando o cinema tinha uma força ímpar no imaginário coletivo (mapear os recortes desse “coletivo”), anos 1910-1950, mapear onde alguém poderia tomar um café antes ou depois de uma sessão. Tomar um sorvete. Mapear os caminhos que levavam até as salas do centro. Os caminhos que levavam até os cinemas de bairro. Quais estabelecimentos comerciais existiam naquele raio, durante a existência daquele cinema. Mapear caminhos e diálogos. Um exercício de imaginar experiências cotidianas. Escrever a história do cinema a partir “de baixo”[4]. Em algum momento, nos anos 1910 ou 1920, existiu no Rio um restaurante “Tom Mix”. As salas de cinema no contexto geral e específico de uma cidade. No contexto geográfico urbano (?).
Também num recorte geracional, nessa relação com a televisão, acho interessante apontar aqui que, em algum momento da minha vida, se me perguntassem o meu filme favorito, minha resposta seria uma série, “Arquivo X”, e não um filme. É hoje difícil falar de cinema sem falar de séries de televisão. E mesmo séries de televisão tomaram outros rumos, com o surgimento das telas de computador e de celular, muitas telas, em diversos tamanhos. E a noção de TV também mudou, saindo da programação linear para os catálogos dos serviços de streaming. A experiência de assistir filmes e séries em casa se aproximou mais da experiência das locadoras de vídeo, e se distanciou da experiência da TV aberta e mesmo da TV por assinatura. Tudo isso são obviedades. Mas existe, então, um movimento maior de curadoria, ou de escolha, por parte do “cliente”, na experiência de assistir audiovisual por meio dos catálogos dos serviços de streaming? Existe uma limitação bastante óbvia, isso é fácil de constatar. Em um sentido de escolha mais amplo, existe o mundo de possibilidades de títulos de filmes e séries para download. The Pirate Bay & Cia. Mapear, escolher, vasculhar, baixar. É um leque ainda mais amplo que os das melhores locadoras de vídeo. Fui sócio da 142 Vídeo, que ficava na rua Mariz e Barros, na Tijuca, e da Vídeo Estação, em Botafogo. Essas duas locadoras foram muito importantes durante a minha graduação. É também uma experiência que se perdeu. Havia um ritual envolvido ali. Sempre há um ritual envolvido. No caso do Vídeo Estação a experiência tinha ainda o extra de ser uma locadora localizada em um cinema, e não em um cinema qualquer, mas no Estação Botafogo, na Voluntários. Quando penso em cinema, o Vídeo Estação é um dos pontos que surgem em minha mente. Sobre as séries de televisão, para além de “Arquivo X”, cito: “Além da Imaginação” (as temporadas originais dos anos 1950-1960); uma série sobre um detetive paranormal chamado Harry, que esqueci o nome no momento em que escrevo, dos anos 2000, teve apenas uma temporada, sem renovação; e, não lembrando de outras, pulo para “Prisma”, série italiana, a mais envolvente produção audiovisual dos anos 2020 (isso num âmbito muito pessoal a partir de tudo que imaginei que seria o cinema que eu faria, durante a faculdade, quando eu ainda pretendia fazer filmes, ou imaginava que os faria; essa série se aproxima muito daquilo que eu imaginava que seria esse meu cinema).
Durante alguns anos, além da lista de filmes que assisti em salas de cinema, eu mantive outras listas: lista de todos os filmes que assisti e gostei; lista de todos os jogos que joguei e gostei; lista de filmes e séries para assistir (uma lista para lembrar daquilo que eu gostaria de assistir um dia). Essas listas respeitavam organizações específicas e próprias, indicadas sempre em um texto introdutório. Deixei de alimentar essas listas antes da pandemia. A lista de filmes e séries para assistir somava algo em torno de 4 mil títulos, talvez. Essa lista era mais sobre listar do que sobre assistir. Listar era também uma atividade por si. Já da lista com os filmes que eu já havia assistido, servia como um diário. O título dessa lista, lembrando agora, era Diário de Bordo. Era uma lista de títulos, sem maiores indicações de datas ou contextos. Ali estava tudo que assisti e gostei. Não era uma lista de favoritos, mas uma lista de tudo que me agradou, em algum nível. Uma lista bengala para a memória. Era também, como o próprio texto de introdução dizia, “uma garrafa jogada no mar do tempo”, para ser encontrada no futuro por Maria e Pedro. E por mim, sempre que eu quisesse. Mas desde que abandonei essas listas, não as consultei mais. Lembro de trabalhar na Cinemateca do MAM, no estágio que fiz indexando a biblioteca da cinemateca, com uma aba aberta no navegador da internet com a listagem de filmes para assistir sendo alimentada a cada título interessante que passava por mim nas páginas dos livros que eu catalogava. Em um período específico quis muito conhecer os filmes de Bollywood, assisti alguns, que entram hoje em minhas listas imaginárias de filmes favoritos. Também dediquei alguns anos em mapeamentos do cinema silencioso, sobretudo dos filmes produzidos nos Estados Unidos, e na nascente Hollywood. Do meu Diário de Bordo, organizado por ano de produção dos filmes, as primeiras três páginas, com aproximadamente 150 filmes, traziam filmes do período silencioso, do início do cinema até a virada para os anos 1930. Assisti a muitos desses filmes em casa, de noite, deitado na cama, pelo monitor do computador, com o som desligado, enquanto todo o restante da casa dormia. Outros, assisti em Pordenone, no Teatro Verdi, durante a Giornate del Cinema Muto, em 2012. Outros, quando eu já não alimentava mais as minhas listas, assisti em Bolonha, em 35mm, na sala Scorsese ou na sala Lumière, da Cinetecadi Bologna, em 2022. Tive, ainda, em 2019, a oportunidade de exibir filmes silenciosos em sessões mensais na Cinematecado MAM, com uma sessão especial no cinema Odeon. O recorte foram filmes produzidos em Hollywood. Eram programas organizados por mim e por Drika de Oliveira para nosso cineclube, Retrolâmpago de Amor Visual. Os pontos altos foram a sessão com um drama protagonizado por Greta Garbo e John Gilbert (?), com acompanhamento de piano executado ao vivo por Cadu Pereira; e a sessão de “Aurora”, de Murnau, que tecnicamente não é um filme silencioso (primeiro filme com pista Movietone?). Essa sessão foi introduzida por Hernani Heffner, e após o filme, um debate bastante ousado (?) foi iniciado por Eduardo Toledo, debate esse que depois foi continuado na página do cineclube no Facebook. Destaco também a sessão no Odeon de “When Knighthood was in Flower”, protagonizado por Marion Davies. No YouTube ainda é possível encontrar algumas gravações introdutórias que exibimos em sessões do cineclube em 2019. Em 2020, a ideia era o cineclube se concentrar mais no Estação Botafogo, com exibição de filmes silenciosos brasileiros de ficção. A primeira sessão foi em fevereiro, com os dois filmes sobreviventes de José Medina (“Exemplo Regenerador”, “Fragmentos da Vida”). Fiz o acompanhamento musical dessa sessão, usando um laptop emprestado, improvisando por cima de algumas gravações. A sessão de março foi “Aitaré da Praia”, na Cinemateca do MAM, que dediquei a Luciana Corrêa de Araújo. A terceira seria “Limite”, na Sala 1, no Estação, em abril, apresentada por Cacá Diegues e Saulo Pereira de Mello. Mas veio a pandemia. A sessão não aconteceu. A pandemia paralisou o cineclube. E levou Saulo. O cineclube não retomou suas atividades.
De outras sessões marcantes, da época da faculdade para cá, posso destacar, numa linha direta, mas tortuosa: “Tio Boonmee, Que Pode Recordar Suas Vidas Passadas”, que assisti com Natália, em Botafogo, no Estação Rio ou no Espaço Itaú (saí muito empolgado do cinema, conversando com Natália; eu já havia estudado e debatido o filme mesmo antes de assisti-lo pela primeira vez, por conta das discussões e análises da disciplina “Roteiro II”, ministrada por José Carvalho; aquele era, também, um cinema que eu e meus amigos de faculdade queríamos praticar um dia, em breve, em nossos filmes - entre esses amigos, Victor Hugo Fiuza, Rodrigo Ferdinand e Caíque Mello Rocha); “Depois do Vendaval”, de John Ford (diretor favorito da maioria de nós àquela altura), e “A Viagem do Balão Vermelho”, de Hou Hsiao-Hsien, ambas as sessões na sala de cinema do andar térreo do CCBB do Rio de Janeiro, sessões essas em dias distintos, em mostras obviamente distintas, mas que na minha memória e na minha vivência ocorreram num mesmo momento de êxtase da geração formada em cinema pela PUC-Rio, jovens que ingressaram no curso entre 2005 e 2009, primeiras levas da habilitação em cinema naquela universidade, um grupo que de forma inegável esteve organizado em torno da influência de Hernani Heffner, e de forma mais ou menos direta, em torno do cineclube CinePUC, realizado então na sala 102-K, edifício John Kennedy; aproveitando a lembrança do CinePUC, outra sessão que ficou marcada em minha memória: “Gerry”, de Gus Van Sant, na 102-K (outro exemplar do cinema que queríamos fazer; e outro exemplar de “sala de cinema” que não era sala de cinema, mas que vivi um pouco como se fosse, ou fingindo que fosse); ainda na 102-K, “Os Famosos e os Duendes da Morte”, de Esmir Filho, exibido em aula por Hernani Heffner, minha última aula com Hernani durante a graduação, num clima místico de despedida provisória (naquela aula Hernani apontava, direta e indiretamente, para certa “impossibilidade” de levarmos adiante o cinema que talvez estivéssemos buscando para nós enquanto geração; eu já havia assistido o filme de Esmir Filho duas vezes antes dessa aula, uma vez sozinho, no Estação Botafogo, outra vez com Victor Hugo e Mariana, no então Estação Laura Alvim); “Limite”, em sessão fechada na Cinemateca doMAM, com os outros estagiários do projeto de organização da biblioteca, em 2013, acompanhados por Fabricio Felice, nosso chefe no projeto, e Hernani; um filme silencioso indiano do qual não me recordo o nome, em uma das salas de exibição da Cineteca di Bologna, em 2022, com a trilha musical mais impressionante que já vi se encaixar com imagens em um filme (era a trilha composta para a versão restaurada do filme, que constava no próprio vídeo, e não um acompanhamento musical ao vivo daquela sessão em específico); “O Atalante”, de Jean Vigo, no Cine Vila Rica, em 2018 ou 2019, outra sessão de catarse, acompanhado de amigos do CTAv e da Cinemateca Brasileira, durante a Mostra de Cinema de Ouro Preto; “Chico Xavier”, possivelmente no São Luiz, no Largo do Machado, ou no Roxy, em Copacabana, a sessão mais cheia que já presenciei em uma sala de cinema (perdendo talvez apenas para algumas sessões ao ar livre na Piazza Maggiore durante o Cinema Ritrovato, em Bolonha, em 2022); “Feliz Natal”, do Selton Mello, que assisti duas vezes, a primeira no Estação Gávea, acho que durante o Festival do Rio; “Ladrões de Cinema”, de Fernando Coni Campos, no cineclube Sessão Corsário, em sessão da qual me lembro muito pouco, mas que ficou marcada em mim de maneira tão difusa que eu guardei a sensação da memória confusa; se não me engano, essa sessão aconteceu no auditório de uma faculdade de Direito em Botafogo, mas não me recordo bem; uma sessão com filmes de Segundo de Chomón, na Cinemateca do MAM, em um fim de semana - na sala, somente eu, Natália, e um senhor, bem velhinho, que dormia; “Operação Big Hero”, no cinema do Botafogo Praia Shopping, primeira sessão de filme de longa metragem da Maria; “Five Nights at Freddy’s”, no cinema do Shopping Metrô Santa Cruz, a sessão mais anárquica em que já estive, com Maria e amigos dela do colégio, numa catarse infanto-juvenil que nenhum crítico sério e sem visão poderia abarcar em textos tolos (o poder do filme estava ali, naquela catarse, naquela anarquia na sala de cinema, texto, contexto e intertexto, diegese e exegese); “Nostalgia”, versão restaurada do filme de Tarkovsky, no Cinema Europa, Via Pietralata, Bolonha, com colegas da FIAF Film Restoration Summer School (todos nós já tínhamos assistido o filme antes, uma ou mais vezes, em outras ocasiões, em nossas vidas; nenhum de nós gostou do filme tanto quanto nós lembrávamos de ter gostado quando assistimos pela primeira vez ou primeiras vezes, mais jovens); “Solaris”, Tarkovsky, em 35mm, cópia muito bonita, no Instituto Moreira Salles, Rio de Janeiro, quando entendi o filme pela primeira vez, com legendas que faziam sentido, ao contrário das legendas do DVD da Continental, com tradução muito estranha; “Uma Aventura aos 40”, numa sessão no CCBB, Rio de Janeiro, lembro pouco do filme, mas foi a segunda vez que saí com Natália (primeira filme brasileiro em que aparece uma televisão, lembro disso; acho que era na mostra Clássicos e Raros do Cinema Brasileiro, algo assim, se não me engano, curadoria do Remier Lion, que talvez não saiba, mas influenciou minha geração - gosto de pensar em termos geracionais); “Super 8”, um filme sobre fazer filmes, um filme de ficção científica muito influenciado por Spielberg sobre fazer filmes - assisti com Natália, talvez no cinema do Shopping Tijuca; lembro que na faculdade, em aula do Arturo Netto, ele mencionou que ali, por volta de 2011, o cinema do Shopping Tijuca, as salas do Kinoplex do Shopping Tijuca, eram as salas com a maior frequência de público de todos os cinemas do Rio de Janeiro; gosto do grande saguão desse Kinoplex, tento achar nele indícios de continuidades com os saguões dos cinemas do passado e sua estética e disposição de cartazes e papelões recortados anunciando filmes.
Para um estudo geracional infundado talvez, eu imaginei enviar este texto para todos os que se formaram em Cinema & Correlatos entre 2005 e 2015 aproximadamente, num grande chute nada científico, para buscar mapear alguma tendência. Ou para os estudantes de cinema nascidos entre 1980 e 1995, a Geração do Milênio. Fazer a partir desses textos uma grande compilação. E tentar mapear algo nisso. Entender algo a partir disso. Buscar alguma unidade a partir desses relatos, com o mero intuito de encontrar traços geracionais que possam nos unir enquanto… geração. Lembro que Victor Hugo tentou algo assim com seu projeto de documentário durante a faculdade. Nunca assisti esse documentário. Eu e Eduardo muitas vezes falamos sobre escrever certa História não contada da preservação audiovisual no Brasil a partir de 2012, mas nunca paramos para fazê-lo. Tamara pensa em entrevistar a velha guarda da Cinemateca Brasileira, para que possamos entender melhor quem somos. Gosto muito da ideia. Talvez um traço de nossa geração seja esse desejo de nos situarmos dentro da história, das histórias e da História. Fazemos parte da História. Para fechar de maneira a imitar os textos acadêmicos que terminam em desejos, espero que este pequeno texto possa ser o início de alguma coisa (no sentido de ser um primeiro movimento meu em direção a algo mais coeso e organizado em termos de escrita). Sobretudo, algo mais coeso em destrinchar, de maneira mais pormenorizada e específica, o quanto as vivências daqueles que trabalham com preservação audiovisual estão imbricadas em uma teia de constante absorção de imagens, o quanto essa relação com as imagens é profunda, e o quanto ela influencia a nossa relação com o audiovisual enquanto consumidores de imagens. Esse não é o ponto neste breve ensaio, mas, para mim, como eu já havia apontado no início deste texto, não é possível dimensionar de forma mais aprofundada minha relação com o audiovisual sem aprofundar o papel formador dos arquivos de filmes nessa relação. Quando penso em cinema, penso ao mesmo tempo em cinemateca.
[1] Sob influência das ideias apresentadas no livro “Film Curatorship: Archives, Museums, and the Digital Marketplace”.
[2] Hoje Shopping Boulevard, em Vila Isabel, Rio de
Janeiro.
[3] Pensando em audiovisual hoje, penso que caberiam em
listas os vídeos do YouTube e os vídeos feitos para o TikTok. Vídeos esses, em
vários âmbitos, em muitos casos, experimentais. O cinema mais experimental do
século XXI está na Internet.
[4] Ver as propostas de Richard Maltby nesse sentido.
Foto dos cines Carioca e América: Ignácio Ferreira - 23/10/1989