Por Frederico Branco (1927-2000) (Crônica de 1988 para o "Jornal da Tarde", publicada no livro "Postais Paulistas" - 1993)
Quando a vida é longa e as datas muitas, podem ocorrer derrapagens no tempo. Como me ocorreu, no caso do Metro, agora cinquentão [em 1988]. Se não fosse o registro do Carlos Hee [jornalista e escritor] e a boa memória do Rubem Biafora [1922-1996 - cineasta e crítico de cinema], no "Jornal da Tarde", não me teria dado conta do aniversário do cinema inaugurado nos idos de março de 1938, um dos acionadores de nossa Cinelândia. E teria também esquecido o OK, [*taxi-dancing] situado no lado oposto da Avenida São João, que me poupou de boa.
Por ser ainda pequeno, eu não fazia ideia do que o Metro viria a representar. Nem me interessei muito pelo próprio. Fui praticamente arrastado à sua inauguração. Sabia que a fita de estreia seria uma daquelas chatas, de amor, sem tiros, mocinhos, cavalos ou índios. Por mim, bem que teria ido ao Avenida, velho e simpático pulgueiro situado um pouco mais abaixo na Avenida São João. Lá estariam à minha espera, em sessão dupla, Buck Jones, Silver, montes de bons bandoleiros, a serem curtidos com pipoca e algodão-doce. Mas meu pai era amarrado a musicais e não houve como induzi-lo a trocar de programa. Devo ter dormido durante boa parte do tal "Melodia da Broadway", sem dar maior atenção ao que fazia o Robert Taylor ou sapateava a Eleanor Powell. Não faziam meu gênero.
Só muito depois disso comecei a compreender a importância do papel do Metro, como precursor de uma revolução, no que viria a ser o que chamávamos de nossa Cinelândia.
Antes de sua inauguração, até os cinemas mais importantes entre os lançadores do Centro - o modernoso Ufa, que viraria Art Palácio, o Broadway, do lado direito da Avenida São João, o Alhambra, da Rua Direita, o Rosário, da Rua São Bento - não tinham muito a oferecer além das fitas exibidas. A projeção variava muito e os sistemas de som eram sujeitos a frequentes distorções. Quando a fita era boa, as espartanas poltronas de madeira - espécie de baldes em que o espectador tinha de acomodar-se - eram toleráveis, mas duras como o diabo quando o programa não correspondia ao que era esperado. No verão, os cinemas funcionavam como estufas, no inverno como geladeiras. Isso, quanto aos lançadores do Centro. Dos demais, de segunda linha, como o citado Avenida, o Apollo, o Pedro II, o Santa Helena e o Recreio, nem se fala. E o mesmo se aplicava aos reexibidores de bairro, como Santa Cecília, o Phenix, o Paulista ou o Rex.
Iam as coisas nesse pé quando o Metro chegou, para arrebatar corações e resgatar traseiros maltratados, como ponta de lança de uma revolução. A preços bastante módicos oferecia o que os outros não tinham: o conforto de poltronas estofadas, de couro vermelho, projeção impecável, sonorização perfeita, tapetes macios, decoração chegada ao bolo de noiva, muito apreciada na época, com motivos supostamente orientais. Além disso, ar-condicionado, até então desconhecido no Brasil. Não era apenas confortável, mas muito chique, estabelecendo novos padrões: senhoras e senhoritas compareciam paramentadas, de chapéu e luvas, sapatos e bolsas combinando, ao passo que os cavalheiros, obrigatoriamente, de paletó e gravata.
E o padrão Metro deu origem a uma de nossas transitórias vaidades municipais. Pobres de belezas naturais, não tínhamos o Pão de Açucar, Copacabana e o Corcovado, mas os cariocas tinham de curvar-se ante nossa Cinelândia, a constelação de cinemas de alta classe que surgiria no Centro, para concorrer com o Metro. Na competição, que se iniciou a partir de 1938, os lançadores centrais tiveram de adaptar-se ao novo padrão, como aconteceu com o Art, o Opera, o Rosário e o Broadway. Outros já nasceram equipados para concorrer, como o Bandeirantes, com sistema especial de iluminação, o Marrocos, com bar interno, o Ipiranga com as novidades do Pullman [luxuosa plateia superior, como as atuais salas VIP] e organista no palco, o Olido e o Ritz, com orquestras que tocavam durante os intervalos nas sessões noturnas, melhor projeção, sonorização adequada e o conforto de poltronas estofadas. Tudo desencadeado pelo pioneirismo do Metro. Daí o desenvolvimento da Cinelândia paulistana.
Pena que ela, justa razão de vaidade local, não tenha durado muito. As limitações ao entretenimento de massa - confinados ao trio futebol-rádio-cinema - acabaram sendo superadas pelo advento da TV, da industria automobilística nacional e pelas consequências da descentralização. O antigo Centro passou a ser esvaziado por causa dos bairros, entrando num processo gradativo de deterioração. O que tinha sido muito chique passou a ser brega. Só demandava ao Centro quem precisava - e com isso foi-se a não tão velha Cinelândia. Muitos dos cinemas lançadores centrais - Opera, Broadway, Rosário - desapareceram. Para sobreviver, os que restaram tiveram de ajustar-se às novas condições. Uns viraram "pornocines", como foi o caso do Ouro, filho temporão do velho Bandeirantes no Largo do Paiçandu. Outros, como o Ipiranga, Art, Marrocos, tiveram de redimensionar-se em salas menores ou recorrer a programas duplos. Nem mesmo o próprio Metro, pioneiro da renovação, escapou. Hoje [em 1988], cinquentão e competindo com os demais do Centro, remanescentes da Cinelândia, também está dividido em duas salas, com fórmica no lugar da antiga suntuosidade de inspiração pretensamente oriental, como lamenta o Biafora.
Inevitavelmente, para quem no Metro original se emocionou com a "Rosa da Esperança", encantou-se com o "Desfile da Páscoa" e riu com "Escola de Sereias" - que dizer de "... E o Vento Levou"? - a decadência deve ter sido amarga.
Dela, por pura sorte, fui poupado pelo OK, o velho "taxi-dancing" que funcionava no lado oposto da São João. Muito antes da deterioração da Cinelândia e da remodelação do Metro, eu já tinha cruzado a avenida, devidamente equipado com calças compridas e um buço promissor. Dava as costas às tão belas quanto insubstanciais Vivian Leigh, Lana Turner e Cid Charisse pelas talvez não tão lindas mas muito mais substanciais Lulu, Katia e Silvinha, que giravam comigo na pista iluminada do OK, ao compasso taxi-metrado de bolerões lacrimosos e tangos arrabalescos.
Foi assim, graças à cortesia especial do OK e suas garotas - por onde andarão elas? -, que não cheguei a ressentir a morte da velha Cinelândia paulista. E nem ao menos sei se o velho leão ainda ruge lá dentro do desfigurado cinquentão que é o Metro da São João.
O cine Metro fechou em 27/02/1997 e hoje abriga uma igreja evangélica.
*taxi-dancing - Salões de baile onde havia dança de aluguel. Pagava-se para bailar com dançarinos.
Quando a vida é longa e as datas muitas, podem ocorrer derrapagens no tempo. Como me ocorreu, no caso do Metro, agora cinquentão [em 1988]. Se não fosse o registro do Carlos Hee [jornalista e escritor] e a boa memória do Rubem Biafora [1922-1996 - cineasta e crítico de cinema], no "Jornal da Tarde", não me teria dado conta do aniversário do cinema inaugurado nos idos de março de 1938, um dos acionadores de nossa Cinelândia. E teria também esquecido o OK, [*taxi-dancing] situado no lado oposto da Avenida São João, que me poupou de boa.
Por ser ainda pequeno, eu não fazia ideia do que o Metro viria a representar. Nem me interessei muito pelo próprio. Fui praticamente arrastado à sua inauguração. Sabia que a fita de estreia seria uma daquelas chatas, de amor, sem tiros, mocinhos, cavalos ou índios. Por mim, bem que teria ido ao Avenida, velho e simpático pulgueiro situado um pouco mais abaixo na Avenida São João. Lá estariam à minha espera, em sessão dupla, Buck Jones, Silver, montes de bons bandoleiros, a serem curtidos com pipoca e algodão-doce. Mas meu pai era amarrado a musicais e não houve como induzi-lo a trocar de programa. Devo ter dormido durante boa parte do tal "Melodia da Broadway", sem dar maior atenção ao que fazia o Robert Taylor ou sapateava a Eleanor Powell. Não faziam meu gênero.
Só muito depois disso comecei a compreender a importância do papel do Metro, como precursor de uma revolução, no que viria a ser o que chamávamos de nossa Cinelândia.
Antes de sua inauguração, até os cinemas mais importantes entre os lançadores do Centro - o modernoso Ufa, que viraria Art Palácio, o Broadway, do lado direito da Avenida São João, o Alhambra, da Rua Direita, o Rosário, da Rua São Bento - não tinham muito a oferecer além das fitas exibidas. A projeção variava muito e os sistemas de som eram sujeitos a frequentes distorções. Quando a fita era boa, as espartanas poltronas de madeira - espécie de baldes em que o espectador tinha de acomodar-se - eram toleráveis, mas duras como o diabo quando o programa não correspondia ao que era esperado. No verão, os cinemas funcionavam como estufas, no inverno como geladeiras. Isso, quanto aos lançadores do Centro. Dos demais, de segunda linha, como o citado Avenida, o Apollo, o Pedro II, o Santa Helena e o Recreio, nem se fala. E o mesmo se aplicava aos reexibidores de bairro, como Santa Cecília, o Phenix, o Paulista ou o Rex.
Iam as coisas nesse pé quando o Metro chegou, para arrebatar corações e resgatar traseiros maltratados, como ponta de lança de uma revolução. A preços bastante módicos oferecia o que os outros não tinham: o conforto de poltronas estofadas, de couro vermelho, projeção impecável, sonorização perfeita, tapetes macios, decoração chegada ao bolo de noiva, muito apreciada na época, com motivos supostamente orientais. Além disso, ar-condicionado, até então desconhecido no Brasil. Não era apenas confortável, mas muito chique, estabelecendo novos padrões: senhoras e senhoritas compareciam paramentadas, de chapéu e luvas, sapatos e bolsas combinando, ao passo que os cavalheiros, obrigatoriamente, de paletó e gravata.
E o padrão Metro deu origem a uma de nossas transitórias vaidades municipais. Pobres de belezas naturais, não tínhamos o Pão de Açucar, Copacabana e o Corcovado, mas os cariocas tinham de curvar-se ante nossa Cinelândia, a constelação de cinemas de alta classe que surgiria no Centro, para concorrer com o Metro. Na competição, que se iniciou a partir de 1938, os lançadores centrais tiveram de adaptar-se ao novo padrão, como aconteceu com o Art, o Opera, o Rosário e o Broadway. Outros já nasceram equipados para concorrer, como o Bandeirantes, com sistema especial de iluminação, o Marrocos, com bar interno, o Ipiranga com as novidades do Pullman [luxuosa plateia superior, como as atuais salas VIP] e organista no palco, o Olido e o Ritz, com orquestras que tocavam durante os intervalos nas sessões noturnas, melhor projeção, sonorização adequada e o conforto de poltronas estofadas. Tudo desencadeado pelo pioneirismo do Metro. Daí o desenvolvimento da Cinelândia paulistana.
Pena que ela, justa razão de vaidade local, não tenha durado muito. As limitações ao entretenimento de massa - confinados ao trio futebol-rádio-cinema - acabaram sendo superadas pelo advento da TV, da industria automobilística nacional e pelas consequências da descentralização. O antigo Centro passou a ser esvaziado por causa dos bairros, entrando num processo gradativo de deterioração. O que tinha sido muito chique passou a ser brega. Só demandava ao Centro quem precisava - e com isso foi-se a não tão velha Cinelândia. Muitos dos cinemas lançadores centrais - Opera, Broadway, Rosário - desapareceram. Para sobreviver, os que restaram tiveram de ajustar-se às novas condições. Uns viraram "pornocines", como foi o caso do Ouro, filho temporão do velho Bandeirantes no Largo do Paiçandu. Outros, como o Ipiranga, Art, Marrocos, tiveram de redimensionar-se em salas menores ou recorrer a programas duplos. Nem mesmo o próprio Metro, pioneiro da renovação, escapou. Hoje [em 1988], cinquentão e competindo com os demais do Centro, remanescentes da Cinelândia, também está dividido em duas salas, com fórmica no lugar da antiga suntuosidade de inspiração pretensamente oriental, como lamenta o Biafora.
Inevitavelmente, para quem no Metro original se emocionou com a "Rosa da Esperança", encantou-se com o "Desfile da Páscoa" e riu com "Escola de Sereias" - que dizer de "... E o Vento Levou"? - a decadência deve ter sido amarga.
Foi assim, graças à cortesia especial do OK e suas garotas - por onde andarão elas? -, que não cheguei a ressentir a morte da velha Cinelândia paulista. E nem ao menos sei se o velho leão ainda ruge lá dentro do desfigurado cinquentão que é o Metro da São João.
O cine Metro fechou em 27/02/1997 e hoje abriga uma igreja evangélica.
*taxi-dancing - Salões de baile onde havia dança de aluguel. Pagava-se para bailar com dançarinos.