Por Francisco J B de Aguiar
Para nós, habitantes das cidades do séc XX e XXI, cinema era e é coisa corriqueira, como supermercado: faz parte do dia a dia. Assim, uma crônica sobre cinemas será no mais das vezes um relato de miudezas, sem fatos extraordinários, experiência múltipla e difícil de organizar. Mas é desse material mesmo que se fazem as crônicas, então vamos tentar...
Nos anos 50, quando estreei a primeira calça comprida, alguns cinemas do Centro, como o Rivoli e o Normandie (atenção para os nomes!) eram ligeiramente solenes: exigia-se terno e gravata, inclusive dos meninos – pequena complicação que lhes garantiu um lugarzinho na memória dos garotos da minha geração. Eram também bonitos, com tapetes fofos, capazes de matar um asmático, e quando o filme era mais longo (lembro-me em especial de A Volta ao Mundo em Oitenta Dias, em que saí da sessão apaixonado por Shirley MacLaine, no papel de uma indiana deslumbrante), havia um intervalo no meio da sessão. Podia-se então ir comprar dropes (já ouviu falar?), chocolates e refrigerantes na bombonnière (era assim mesmo que a gente chamava o balcãozinho onde se vendiam doces) ou ficar ouvindo um pianista (havia um piano num palco em frente à tela), talvez última reminiscência dos tempos do cinema mudo. Quase um acontecimento!
Cine Rivoli, um importante cinema inaugurado em 1958
Já nos cinemas da Rua Augusta e da Consolação, perto de minha casa, não havia nada disto; cinemas de bairro, e havia montes deles naquela época em que se falava muito de viagem à Lua, mas nem o mais ousado futurólogo previa a invenção do DVD. Alguns ficavam em locais hoje bastante improváveis: um na Rua Turiassu, em Perdizes, ou numa rua tranqüila da Aclimação, outro na Vila Guarani... Esse, por sinal, acabou virando salão de baile e, como reforma custa caro, conservou a arquitetura de sala de cinema, em declive, mais parecendo uma pista de skate que um lugar para dançar.
Podia-se entrar no meio da sessão e ficar para a seguinte. Talvez as salas fossem mais escuras, ou talvez fosse um cabide de emprego, mas existiam “lanterninhas”, que te ajudavam a encontrar lugar, com uma luz bem fraquinha, para não atrapalhar quem já estava lá. Talvez fosse só uma questão de delicadeza.
Em vez de 20 minutos de trailers, 20 minutos de documentários. Eu gostava do Canal 100, mostrando jogos do Campeonato Carioca: as seqüências em que os jogadores apareciam em câmara lenta, articulando em silêncio palavrões tremendos, viraram mais tarde cenas hilárias do grupo Língua de Trapo. Em vez de desenho animado da companhia de seguros pedindo para desligar os celulares, o sinal de que o filme ia começar era dado por um gongo retumbante, que ocupava toda a tela. Logo depois aparecia ainda o certificado da Censura Federal, devidamente assinado. A censora Solange T. Hernandes, a “Dona Solange” de ingrata memória, acabou sendo até “homenageada” em uma música do Léo Jaime. Havia as matinées – e muitas nem eram de manhã – com filmes de Tom e Jerry (eu torcia sempre pro gato), Gordo e Magro, e do Carlitos, a que eu comparecia eufórico, acompanhado da babá.
Ao escrever esta crônica, percebo que minhas lembranças se prendem muito mais aos filmes; não tenho nenhuma recordação especial das salas, como não tenho, por exemplo, das lojas do Pão de Açúcar. Para não ser injusto, declaro, porém, que ainda guardo vagamente a imagem das cadeiras do cine Paulista, novinhas, brancas com riscas pretas como a gloriosa bandeira do nosso estado, vandalizadas pelo público de Rock Around the Clock, exibido dias antes. Bill Halley e seus Cometas anunciavam um novo tempo e eu, na inocência dos meus 6 anos, nem desconfiava.
Os gatos do cine Astor, hoje Livraria Cultura, andavam por todo canto, passeavam pelos guichês, faziam companhia à bilheteira e não miavam durante as sessões. O Comodoro na Avenida São João, lembrado pela inovação: parecia que você estava dentro da tela, no carrinho, descendo a Montanha Russa a 120 por hora. Uma amiga jurava que tinha assistido a 5 sessões seguidas para rever as imagens de um tsunami (atualmente é professora de Filosofia). As pessoas se abaixavam, gritavam... Além desses, o Marachá (onde arranjavam esses nomes?), na baixa Augusta, onde aconteceram por um tempo, às sextas feiras à meia noite, as memoráveis sessões malditas, ponto de encontro de uma tribo divertida e galhofeira, meio intelectual, meio de esquerda. O Bijou, na Praça Roosevelt, cinema de arte, onde assisti ao filme com o título mais bonito que já ouvi: “Vaghe stelle dell’Orsa...”, de Luchino Visconti. E as grandes salas do Centro, testemunhas dos tempos áureos da Sétima Arte: o Marabá (hoje tombado), o Ipiranga, com capacidade para quase 2000 espectadores, que já conheci transformado em refúgio de office boys que iam matar o tempo. Esses cinemas grandes tinham um andar de cima, com boa visão da tela, por sinal; para sobreviver, alguns foram divididos em 5 ou 6 salinhas, outros não resistiram à concorrência da TV e do Vídeo.
Nos cinemas japoneses da Liberdade, na São Paulo já cosmopolita dos anos 50, era possível ver filmes de grandes diretores como Kurosawa e Ozu, antes até que em Nova York ou Paris.
A história segue, agora com poltronas mais confortáveis, compra de ingressos pela Internet, mas os lugares não têm mais cara, como, também, os próprios shoppings que os abrigam. Muitas salas antigas viraram templos Pentecostais e outros que tais. Um amigo diz que crente não pode ver um cinema sem pensar logo em fazer uma Igreja. Vocação litúrgica de lugares onde, há mais de 100 anos, pessoas começaram a se reunir diante de uma tela prateada? Ou quem sabe é a religião que está ficando cada vez mais próxima do cinema? O espetáculo continua...