Por Marcelo Canellas - Jornalista.
Este texto reflete sobre a importância da preservação de antigos cinemas, não apenas pelo valor histórico e arquitetônico, mas pela permanência de um símbolo da memória cultural e afetiva de um povo. Locais que trazem lembranças de emoções e fantasias vividas por antigas e novas gerações. Como já dizia o cineasta Kleber Mendonça Filho: "Vejo as salas de cinema (especialmente as antigas) como monumentos à passagem do tempo, lugares impregnados de gente e suas histórias". - Antonio Ricardo Soriano
Cine Independência
O VENDE-SE em letras enormes na fachada do Cine Independência me fustigou por dias a fio. Até que me ocorreu: será que o proprietário não aceitaria um escambo? Como não tenho dinheiro no banco, eu poderia dar em troca o sítio onde moro. Não, quatro hectares de cascalho e mato não seduziriam um negociante de imóveis. Minhas jabuticabeiras cravejadas com as pérolas negras do meu pomar são tesouro escasso para quem quer ganhar dinheiro com um velho cinema.
Penso, então, em oferecer toda a fortuna que o próprio Independência me legou ao longo dos anos. Posso abrir a arca que guarda o tropel dos peles-vermelhas perseguindo John Wayne ou James Stewart. Logo atrás, viriam Tarzan e Fantasma, guardiões da mãe África. E todos aqueles personagens que pularam das telas para nos fazer companhia nos circos, nas selvas e nos sete mares das nossas casas e quintais: Dumbo, Mogli, Barba Ruiva.
Posso regatear com todas as guerras estelares; posso clamar por todas as súplicas, traições, incestos, perdões e rupturas irreconciliáveis que testemunhei; posso argumentar com todos os sustos, todas as lágrimas, toda a irritação por finais previsíveis.
Certamente vale muito o hábito das senhoras aposentadas, que usavam suas tardes livres para ir à matinê sem nem sequer se preocupar em checar a programação. O que também gerava enganos terríveis, como o da minha velha tia-avó que, ao ler o título "Garganta Profunda", achou tratar-se de uma love story. Até sair porta afora depois de, logo nas primeiras cenas, descobrir que tinha love de mais e story de menos.
Posso oferecer de lambuja os festivais de música regionalista a que assisti. E - joia rara do meu baú - o beijo que roubei da minha primeira namorada num show do jovem Alceu Valença.
Vou pedir um bom desconto pelos anos em que o Independência virou igreja evangélica. Mas nem por isso vou deixar de orar para que, em caso de recusar minha proposta, o proprietário só venda o cinema a quem veja naquele espaço algo mais do que um prédio velho. Que conveniência financeira vale a cicatriz de uma cidade sem rosto?
Do livro "Províncias - Crônicas da alma interiorana" - Editora Globo.