Produção, divulgação e distribuição dos filmes brasileiros : erros e acertos

Por Edu Felistoque (Cineasta e produtor cinematográfico brasileiro).
Texto exclusivo para o blog Salas de Cinema de São Paulo.

No cinema, Edu Felistoque, produziu os longas ‘400 Contra Um, Uma Historia do Crime Organizado’ (2010), de Caco Souza e o documentário ‘Mazzaropi’ (2013), de Celso Sabadin. 
Dirigiu os longas ‘Soluços e Soluções’ (2000), ‘Inversão’ (2009) e os filmes da série cinematográfica ‘Trilogia da Vida Real’.

O cineasta Edu Felistoque

Insubordinados’ (2015), com roteiro de Silvia Lourenço, foi o primeiro filme da série ‘Trilogia da Vida Real’. ‘Toro’ e ‘Hector’, com roteiros de Júlio Meloni, respectivamente, segundo e último filme da trilogia, estrearam no cinemas em 24 de novembro de 2016. 

Os filmes da série cinematográfica 'Trilogia da Vida Real'

Produção, divulgação e distribuição dos filmes brasileiros : erros e acertos

Para refletir sobre o problema de pouco alcance do público aos filmes brasileiros, mesmo com a produção de centenas de obras, temos que investigar as origens do tal problema que, em minha opinião, se definem nos 7 tópicos abaixo:

1.
O ‘Cinema Novo’, movimento cinematográfico brasileiro criado em 1952, foi necessário por gerar novas e geniais reflexões politicas. Suas produções ganharam prêmios em festivais e reconhecimento internacional, mas nasceu divorciado do grande público brasileiro, por causa da adoção de uma abstrata linguagem, causando uma forte rejeição por parte desse público. Ainda hoje percebemos essa rejeição quando falamos de cinema de arte ou, até mesmo, cinema brasileiro.

O cinema que mantinha um bom diálogo com o público, antes do movimento ‘Cinema Novo’, era composto de filmes populares, de entretenimento, na maioria comédias, como as famosas ‘Chanchadas’, brutalmente atacadas pelos ‘cinemanovistas’, que alegavam uma séria falta de identidade brasileira nos filmes ‘americanizados’ da época. Logo entraram em declínio e, mais tarde, deram lugar à teledramaturgia na TV.

A comédia, esse gênero bem mais ‘comercial’, faz ainda muito sucesso, mas utilizando-se de uma linguagem televisiva, junto de seu elenco conhecido, para que o público continue no clima e na linguagem das novelas de TV, já que está tão acostumado. O ‘Cinema Novo’ não poderia substituir as ‘Chanchadas’ e nem as ‘Chanchadas’ deveriam substituir o ‘Cinema Novo’, os dois movimentos deveriam conviver em paz até hoje!

2.
Exposição e imposição demasiada da linguagem cinematográfica americana sobre o público brasileiro, que acabou se acostumando com eles de tal forma que, hoje, causa-se estranheza e intolerância a outras linguagens, principalmente, a dos filmes brasileiros.

3.
Obviamente, como o cinema americano dá muito mais lucro aos distribuidores e exibidores de cinema e TV, esses não querem se arriscar e apostar em obras brasileiras. Isso também é reflexo da larga exposição de obras americanas em nosso território.

4.
Arrogância de muitos realizadores, produzindo e impondo filmes com linguagens inacessíveis do grande público. Precisamos pensar nosso cinema, também, como ‘produto audiovisual e de entretenimento’. Adoro filmes de arte e seus dramas existenciais, mas, por muitas vezes, as pessoas querem escapar da estressante vida moderna (ainda mais com esta recente crise politica e econômica), levar a namorada ou a família ao cinema, comer pipoca, dar risada, se divertir e emocionar-se. Não vejo nada de errado nisso!

5.
Faltam salas de cinema com preços mais acessíveis. O preço dos ingressos praticado pelas grandes redes de exibição é inacessível para muitas famílias. O acesso ao cinema deveria ser uma contrapartida direta a população mais carente, uma vez que os filmes nacionais utilizam verbas públicas para fomento, oriundas de impostos.

6.
A inexistência de uma séria e ampla divulgação dos nossos filmes.

7.
A falta de políticas públicas e de fomento para filmes brasileiros, nas fases de divulgação e distribuição.

O ‘Ministério da Cultura’ e a ‘Ancine – Agência Nacional do Cinema’ tiveram muitos acertos nos últimos anos, porém existem alguns erros pra corrigir. Por exemplo: em um edital de produção, o filme deveria, também, ser contemplado em um possível ‘pacote de produção’ que contasse com verbas de produção, divulgação e comercialização. Muitas produções ganham editais, são filmadas, editadas e finalizadas, mas, depois, ‘jogadas na gaveta’, porque não conseguem verbas para a importante divulgação e distribuição, tanto no cinema como na televisão.

Creio que muitos produtores pensam de forma equivocada sobre a relação entre custo e qualidade de produção, isso não procede! Um bom exemplo é o de nossos vizinhos argentinos que com seus filmes ‘pé no chão’, trabalham com orçamentos 50% mais baratos do que os brasileiros e seus filmes alcançam grande sucesso com o público local.  
Outros produtores praticam até hoje uma desnecessária ‘tabela de custos de filmes publicitários’ na produção de filmes de cinema. Além disso, administrar dinheiro público custa caro. Temos ainda um sério agravante: o interesse em lucro na captação dos recursos, já que está estranhamente ‘estabelecido’ que o cinema nacional não dá lucro!

Tive a felicidade de estudar em Cinecittá (Itália), aprendi e me inspirei com o ‘Neorrealismo Italiano’, movimento cinematográfico pós-guerra, que diante de uma Europa com dificuldades enormes, prioridades na saúde e na alimentação do povo, sem verbas para grandes cenários e equipamentos (parecido com o Brasil de hoje), cineastas criativos inventaram uma forma mais econômica e diferente de filmar, adotaram Roma como cenário para suas histórias, uma personagem sem igual. Criatividade em meio às dificuldades. Essa prática possibilita firmar novos negócios, inclusive com pequenos e médios empresários e, também, reduzir custos com cenografia e estúdios, já que todas as cenas são rodadas em locações reais. A ‘Spcine’ está trabalhando de forma positiva para o funcionamento de uma eficiente “Film Commission, que vai diminuir custos e viabilizar, com rapidez e sem burocracia, autorizações para filmagens nas ruas da cidade de São Paulo. Isso também é uma forma de divulgação e apresentação de nossas cidades e da nossa cultura. Os filmes da ‘Trilogia da Vida Real’ que dirigi (‘Insubordinados, Toro e Hector’), foram produzidos com esse pensamento, que surgiu na gênesis do roteiro do filme Inversão (com Gisele Itie, Wander Wildner, Tadeu Di Pietro e Marisol Ribeiro) e, depois, no inicio da criação dos roteiros da série televisiva ‘Bipolar (com Silvia Lourenço, Felipe Kannenberg, Priscila Alpha, Rodrigo Brassoloto e Sergio Cavalcante).

INSUBORDINADOS foi lançado em 2015 e, agora, estamos lançando os dois últimos filmes da trilogia, TOROe HECTOR.

Temos que passar logo essa fase, essa época difícil, onde alguns críticos e gestores culturais escolhem defender e apoiar, somente filmes de realizadores que compactuam com seus pensamentos políticos. Esse preconceito, assim como o de gêneros cinematográficos, tem que acabar logo. O não preconceito é moderno e produtivo e, além disso, não dispersa energia, pois já temos oponentes demais para digladiar, principalmente, os ‘blockbusters’, que não sou contra, mais sim a favor de termos uma programação semanal de filmes mais eclética e equilibrada, com muitos filmes brasileiros e outros de diversas nacionalidades (os chamados ‘filmes de arte’), junto das famosas produções norte-americanas.

A maior dificuldade do cinema brasileiro, sem dúvida nenhuma, é a falta de políticas que proporcionam levar, de forma mais barata, nossos filmes ao público brasileiro. Não precisa focar somente em salas de cinema, existe a TV aberta (já que é uma concessão) que deveria sim, ter uma lei de exibição de conteúdo brasileiro independente, como a lei da TV paga, nº 12.485. E tanto para a TV paga como para a TV aberta, deveríamos contar com uma significativa campanha de divulgação no próprio canal de exibição, com inserções na grade de comerciais, de chamadas e trailers de 30 segundos dos filmes à serem exibidos na grade de programação.

Já vejo como ótima iniciativa e, com bons olhos, o programa ‘Quero Ver Cultura’, a plataforma de vídeo por demanda que foi desenvolvida pelo Ministério da Cultura, com conteúdos audiovisuais nacionais, como curtas e longas-metragens, de ficção ou documentários, produzidos com o apoio de recursos da lei do audiovisual, que os beneficiários do ‘Bolsa Família’ terão acesso através de um conversor. Este projeto pode alcançar um público de até 60 milhões de pessoas. Só não pode exibir apenas filmes políticos ou ideológicos e, principalmente, não pode existir o protecionismo partidário dos programadores e curadores!

O ‘Circuito Spcine’ de salas de cinema, que prioriza a periferia, também é um ótimo exemplo para levar o cinema nacional ao público brasileiro.

As Leis de incentivo a cultura precisam, urgentemente, de amplas reformas. Existem muitas falhas acontecendo, uma delas é o equívoco de conceitos e interpretação das leis. O ato de financiar ‘show business’, com dinheiro de renúncia fiscal para fomento da cultura, chega a ser leviano.

Não sou totalmente contra a utilização de dinheiro público para o fomento do audiovisual brasileiro e, seguramente, afirmo que os produtores independentes não devem somente se ater aos mecanismos de fomento audiovisual, via leis de incentivo e editais. Precisamos lembrar que a palavra ‘fomento’ significa ‘estimulo’, aquilo que anima, que motiva à realização de algo, e eu compreendo que tal ‘ajuda’ serve como catapulta, o início de um negócio, que depois, com o tempo, deverá caminhar com suas próprias pernas, para poder gerar credibilidade do real sucesso, por mérito e não por ajuda política. Não podem existir paternalismos! Estou me referindo a uma indústria do ‘cinema independente brasileiro’ e não a uma ‘indústria de cinema dependente brasileiro’ e seus ‘efeitos colaterais políticos’.

As leis de subsídios não devem somente garantir a produção! O mecanismo das leis precisa criar pontes para levar o filme brasileiro ao seu público, mesmo que, para isso, tenhamos que produzir menos para exibir mais!

Grandes empresários da exibição cinematográfica: Eli Jorge Lins de Lima

Texto publicado na Revista Exibidor, em fevereiro de 2016.

Eli Jorge Lins de Lima, um dos maiores entusiastas do mercado cinematográfico

Sua trajetória profissional agrega mais de 50 anos.
Esta é uma homenagem da Revista Exibidor a Eli Jorge de Lins Lima ou "Seu" Eli, como era carinhosamente chamado pelo mercado.



O presidente da rede de cinemas Centerplex e presidente do Sindicato das Empresas Exibidoras Cinematográficas do Estado de São Paulo - SEECESP, faleceu no início de janeiro de 2016 devido a complicações de um câncer. Nascido em 1947, na cidade de Bezerros (PE), "seu" Eli começou sua paixão por cinema já criança quando colava cartazes dos lançamentos em troca de ingressos, e, já na década de 1950, em São Paulo, conseguiu um emprego no antigo cine Cairo.

Entre 1960 e 1970, o executivo iniciou sua trajetória na área de distribuição ao entrar na Fama Filmes e chegou a atuar também na Condor Filmes e na Paris Filmes, onde permaneceu por 15 anos e chegou à função de gerente de vendas. Foi graças às muitas viagens que, "seu" Eli encontrou um cinema de rua fechado na cidade de Poços de Caldas, em Minas Gerais. Ele então decidiu assumir o espaço, reformá-lo e o colocá-lo para funcionar novamente. Esse primeiro cinema ficou ativo durante 28 anos.

Foi aí que nasceu a São Luiz de Cinemas, que depois trocou de nome para Centerplex, uma das 15 maiores exibidoras no mercado nacional.

O executivo ainda atuou no SEECESP, onde criou o Prêmio ED, que contempla as melhores práticas do mercado de exibição e distribuição desde 2008, e ficou conhecido por sua influência e liderança junto aos pequenos exibidores.

Agora o mercado brasileiro teve de se despedir de um profissional com mais de 50 anos de carreira e um dos maiores entusiastas do setor. "Seu" Eli será lembrado por exibidores e distribuidoras por seu otimismo e paixão pelo cinema.

Seu legado inclui também a atuação de dois filhos (Marcelo e Marcio Lima) que atuam no mercado, fruto de seu exemplo e dedicação.



Centerplex, um dos frutos do seu trabalho na cinematografia

Juntamente a outros dois sócios, "seu' Eli assumiu a difícil tarefa de reabrir um cinema em Poços de Caldas (MG). Começava ali a história da Centerplex.

Os anos passaram, um dos sócios faleceu e "seu" Eli comprou a parte do segundo sócio, ficando, portanto, sozinho para liderar o negócio e abrir outros cinemas de rua pelo interior de São Paulo e Minas Gerais. Assim foi a década de 80.

No início de 90, a empreitada já tomava corpo e a rede São Luiz de Cinemas contava com mais de dez cinemas. Foi então que a crise, originada pelo Plano Collor e pela popularização do videocassete, obrigaram o "seu" Eli a fechar as portas de boa parte dos espaços, ficando apenas com dois cinemas: Cine São Luiz (Poços de Caldas - MG) e Cine Vera Cruz (Capivari - SP).

Foram anos difíceis e de retomada para o setor como um todo, que tiveram novo fôlego com as exibições de "O Rei Leão" (1994) e "Titanic" (1997). O lucro obtido com a bilheteria destes filmes permitiu prospectar novos horizontes e reconquistar o mercado.

Na sequência, vieram outros cinemas de rua pelo interior: Atibaia (SP), São Lourenço (MG), Espirito Santo do Pinhal (SP), Mauá (SP) e São José do Rio Pardo (SP).



A marca "Centerplex Cinemas" surgiu quando o primeiro cinema localizado dentro de um centro de compras foi inaugurado, na ocasião o Shopping Center Lapa (São Paulo - SP). Foi neste momento que o "seu" Eli sugeriu mudar o nome da rede São Luiz de Cinemas para Center (centro) + Plex (complexos) e, então, nasceu a marca.

De lá para cá, novas inaugurações: Lavras (MG), Itapevi, Suzano, Mogi das Cruzes, Caraguatatuba (SP) e o nordeste brasileiro (Maracanaú - CE, Caruaru - PE, Fortaleza - CE).

Alguns cinemas fecharam e outros passaram por um processo de modernização para acompanhar a evolução do mercado. Assim, a rede conta hoje com 14 complexos e 54 salas espalhadas pelo Brasil. É da Centerplex, também, o primeiro cinema nacional a abrigar duas tecnologias de som imersivo em um mesmo complexo (Auro, da Barco, e Dolby Atmos, da Dolby Laboratories).

"Posso dizer que sou um vitorioso, conquistei meu espaço, tenho vários amigos, colaboradores e várias pessoas que me apoiam desde o início. Eu adoro cinema. Não me vejo fazendo outra coisa", disse "seu" Eli em uma das entrevistas à Revista Exibidor.

A paixão de Quentin Tarantino vai do filme às salas de cinema

Por Igor Kupstas
Jornalista formado pela Universidade São Judas Tadeu e Pós-Graduado em Marketing pelo Mackenzie. Trabalhou no site de cinema E-Pipoca, no Departamento de Marketing da Europa Filmes e foi Gerente de Marketing Digital da Mobz. Atualmente assume o cargo de Diretor da Distribuidora O2 Play.
igorkupstas@gmail.com

Em 2015, no recesso de fim de ano, passei uma semana em Miami, onde tive a chance de assistir à versão "Roadshow" do "Os 8 Odiados" (The Hateful Eight), novo filme do Quentin Tarantino, projetado em 70mm.

Roadshow - O cinema Teatral

O formato "Roadshow" se consagrou nos anos de 1950 em Hollywood e consiste em um lançamento limitado aos principais centros urbanos de um filme que, via de regra, era apresentado em um corte exclusivo, geralmente com algumas cenas extras, um prelúdio e um intervalo, e que depois era lançado no país todo, em um formato mais enxuto.

O prelúdio servia para colocar os espectadores no clima. Por uns 15 minutos, a audiência ouvia as principais músicas da trilha sonora antes do filme começar, no "Overture". O fim da música era marcado pelo abrir das cortinas no cinema e a revelação da telona. Um ritual que faz falta pra muita gente.

O filme parava durante a sessão para um intervalo, no qual as pessoas iam ao banheiro, comprar algo na bombonière ou fumar. Alguns filmes entregavam programas com informações sobre a produção.

O "Roadshow" nos EUA tinha lugares marcados em vários cinemas (antes disso ser comum), o ingresso era mais caro e as pessoas se vestiam bem, tal qual para ir à ópera. Aliás, esta mistura de experiência dos musicais e teatro era o grande diferencial, uma resposta ao começo da era do televisor e do home entertainment.

Curiosamente, eu me lembro, nos anos 80, quando eu tinha uns 9 anos, de ver o corte "Roadshow" no VHS duplo (ou triplo?) do filme "Ben-Hur" (Ben-Hur, 1960), o que não fazia nenhum sentido pra mim à época (e não faz muito até hoje). Em casa, ver uma tela parada por 10 minutos de música no Overture era um pedido para apertar a tecla FF.

A Experiência Tarantino

Desde o primeiro filme, "Cães de Aluguel" (Reservoir Dogs, 1993) a marca de Tarantino é a reverência a estilos, músicas e experiências cinematográficas. Pesquisador e fã voraz, Tarantino trouxe de volta o cinema independente, o pulp, o surf rock e atores engavetados. Um dos maiores defensores da película em Hollywood (juntamente a Christopher Nolan e Martin Scorsese), ele filmou "Os 8 Odiados" em 65mm, UltraPanavision, formato widescreen 2.76.1 que não era utilizado desde 1966.


Na sessão, o filme teve a abertura com a música de Ennio Morricone, o Deus das trilhas sonoras de faroeste, e um intervalo de 12 minutos em que eu sai e tive tempo de comprar pipoca. No total, o corte do filme teve 20 minutos a mais, com 6 minutos de cenas extras.

A sala, no entanto, não era uma gigante construção para 1000 pessoas como o antigo Astor, que eu tanto adorava na Avenida Paulista, mas uma sala típica de multiplex, o que me decepcionou um pouco. Eu esperava talvez algo na dimensão do Marabá, mas a experiência foi reduzida a uma janela diferenciada em uma tela comum. Confesso que me atrapalhou nos primeiros 20 minutos, mas depois eu mergulhei.

A Diamond, distribuidora do filme no Brasil, tentou reproduzir o processo por aqui, mas teve limitações técnicas, uma vez que praticamente não existem mais projetores 70mm no País.

Goste dos seus filmes ou não, são malucos como o Tarantino que lutam para manter vivas as tradições dos filmes que fizeram desta arte e do espaço do cinema um ambiente de devoção. E em tempos que muito se discute a "experiência cinematográfica", é interessante ver que muito do que se aponta como tendência era feito há mais de 60 anos. Assim como Tarantino faz com seus filmes e roteiros, todos podemos reciclar e trazer nossa paixão pela sétima arte de volta em seus mínimos detalhes, da película à cadeira, à tela. A diferença está nos detalhes.

Texto publicado na revista Exibidor nº 20, de Fevereiro de 2016.

70mm: o auge do cinema espetáculo

Por Filipe Salles (Fotógrafo e cineasta)

Foi inventado em 1929, ainda no cinema mudo, mas ficou esquecido e restrito até a década de 50. No início da década de 40, as pesquisas no campo da tecnologia de transmissão eletrônica de imagens já haviam chegado, nos EUA, a um grau de excelência que possibilitou a invenção da TV comercial. Num primeiro momento, este avanço não chegou a incomodar, mas já na década de 50, a TV representou para o cinema a inclusão de um concorrente direto e potencialmente promissor, e cuja consequência mais próxima seria sua extinção.

Levando-se em conta que o cinema era uma das maiores fontes de renda americanas, a televisão punha-se como um rígido anteparo ao avanço das produções em película, tanto pela comodidade de assistir filmes pelo aparelho de TV quanto pelo custo menor de uma produção eletrônica. Como em ambos, o interesse comercial era proeminente, a saída que os grandes estúdios encontraram foi a criação de sistemas impossíveis de serem reproduzidos em toda sua grandeza e magnitude pela TV. Em outras palavras, transformar o cinema num espetáculo insubstituível. Um deles foi a cor, outro, o som estereofônico e quadrifônico, e ainda outro, a retomada dos grandes formatos.

Surgiu daí o conceito de grande produção e da volta da bitola de 70mm. E, de fato, era realmente impossível reproduzir a experiência proporcionada pela sala escura numa projeção em 70mm, dada a qualidade da imagem e do som, que ainda hoje nenhuma outra bitola, tanto em película como em vídeo, jamais alcançou.

O 70mm representou o auge do cinema espetáculo nas décadas de 50 e 60 (a era dos grandes estúdios e das grandes estrelas) e as projeções de 70mm em telas gigantescas, sem dúvida, fizeram o cinema triunfar como indústria sobre a televisão, numa época em que a tecnologia eletrônica ainda era muito limitada.



Mas, mesmo hoje, com todo o aparato de vídeo de alta definição e avançados equipamentos, o 70mm ainda se afirma como o mais contundente espetáculo visual já criado, por uma razão muito simples: conforme se pode perceber na imagem acima, o 70mm é uma bitola com o dobro da largura do 35mm, e seu formato de 1:2,20 representa entre 3 e 4 vezes a área útil de um fotograma 35mm. Disso decorre a projeção de uma imagem extremamente nítida, de uma riqueza de detalhes impressionante e com possibilidade de ampliações muito maiores, sem perda de qualidade. A isso, acrescenta-se também o som quadrifônico, que em relação ao 35mm convencional, que, na época, era estéreo, permitia a inclusão de duas pistas de som a mais, e fazia do 70mm uma experiência extasiante.

E por que não se produzem mais filmes em 70mm? Porque são extremamente caros, com equipamentos muito maiores e cujo orçamento multiplica-se vertiginosamente em relação ao 35mm. Por este motivo, mesmo os filmes produzidos em 70mm são, na maioria, grandes épicos, cuja temática, evocando arquétipos heroicos de grandes personagens e histórias marcantes, garantiriam, na pior das hipóteses, um retorno aos milhões investidos nestes filmes. E, com efeito, os filmes mais caros da história foram estes, como Ben-Hur (William Wyler, 1959), Cleópatra (Joseph Mankiewicz, 1963 – provavelmente o mais caro filme já produzido), Os Dez Mandamentos (Cecil B. de Mille, 1956), El Cid (Anthony Mann, 1961) ou mesmo 2001 - A Space Odyssey (Stanley Kubrick, 1968).

Atualmente, o 70mm ainda encontra espaço em produções com fins científicos ou entretenimento puro, como é o caso do IMAX, que se utilizava da bitola deitada (agora a projeção IMAX é digital).

Mas a experiência de assistir a um destes filmes em 70mm levou muitos empresários a manter um arquivo de cópias em 70mm, principalmente na Europa e nos EUA, e que são exibidas periodicamente em salas específicas. Mesmo filmes produzidos originalmente em 35mm, como Star Wars ou Indiana Jones, também ganharam cópias ampliadas em 70mm, claro, sem a mesma qualidade, mas ainda assim sendo uma grande experiência.

65mm

Outro aspecto deve ser abordado em relação ao 70mm. Embora seja comum se referir a ele como 70mm, esta é na verdade a bitola de EXIBIÇÃO, e não a de CAPTAÇÃO. Isso se deve a motivos práticos. Os 5 mm (2,5 de cada lado) que se apresentam após a perfuração são dedicados às bandas sonoras magnéticas da cópia. Como não há registro do som na câmera, não é necessário este espaço depois da grifa e dos rolos de tração das câmeras. Portanto, a bitola das câmeras é 65mm, que são copiados numa bitola de 70mm para projeção. Dependendo do sistema utilizado, esta cópia pode ser ampliada, reduzida ou anamorfizada, como nos sistemas Panavision e Todd-AO.

Formatos para Bitola de 65/70mm

Janela 1:2,20 (1,912" x 0,870") – Formato Standard
Janela 1:2,35 (1,912" x 0,816") – 
Formato anamórfico antigo (até década de 70)
Janela 1:2,40 (1,912" x 0,797") – Formato anamórfico moderno

Entretanto, mesmo com tais recursos, o custo de uma produção desta magnitude era inviável para a maioria dos estúdios, de tal maneira que foi necessária a criação de sistemas alternativos. Tais sistemas, os formatos especiais, simulam diferentes formatos numa mesma bitola, ao ponto de permitir, com algumas restrições técnicas, um formato próximo à proporção do 70mm numa bitola de 35mm.
Parte do texto Bitolas e formatos no cinema, de Filipe Salles.

Novo filme de Tarantino será exibido em 70mm

O próximo filme de Quentin Tarantino já tem data marcada. Segundo a Weinstein Company, o lançamento de "Os Oito Odiados" está previsto para 25 de dezembro nos Estados Unidos e vem com novidade: o faroeste ambientado no pós Guerra Civil será exibido, durante duas semanas, em formato 70mm. A ideia é distribuir as cópias digitais somente a partir de 8 de janeiro. No Brasil, o longa terá distribuição da Diamond, ainda sem data de estreia, e deve ser lançado direto no formato digital, devido à inexistência de salas com projeção nessa bitola.

A decisão radical de explorar o 70mm, hoje uma raridade nos cinemas do mundo, foi do próprio diretor, famoso defensor da película. Esse não é o primeiro lance polêmico envolvendo o projeto. Em 2014, ainda em fase de desenvolvimento, Tarantino assistiu ao vazamento de seu roteiro original, que logo depois foi publicado no site Gawker.




Depois de promover uma leitura pública do script, o cineasta chegou a desistir do filme, mas voltou atrás e decidiu retomar o trabalho após mudanças drásticas na história. Samuel L. Jackson, Kurt Russel, Jennifer Jason Leigh, Walton Goggins, Demian Bichir, Tim Roth, Michael Madsen e Bruce Derne estão no elenco principal.
Texto publicado no Portal Filme B, em 12/06/2015.

Leia, também, o texto Cinemas de rua com 70mm, de Paulo Roberto Elias.
Conheça tudo sobre o formato 70mm no site In70mm.com.

Abaixo, antigas exibições em 70mm na cidade de São Paulo :


Julio Llorente e os primórdios do cinema em São Paulo (Cronologia)

Por Antonio Ricardo Soriano.

Um pouco da vida de um jovem bilheteiro de cinema que passou a dirigir, em São Paulo, uma das maiores redes de cinemas da história da exibição cinematográfica brasileira: a Companhia Cinematográfica Serrador.

Segue abaixo uma breve cronologia de eventos importantes na vida de Julio Llorente:

16/11/1907
Inauguração do primeiro espaço dedicado, exclusivamente, a exibições cinematográficas, o Bijou Theatre, o primeiro cinema de São Paulo. O jovem espanhol Julio Victor Llorente, auxiliar de escritório, era o encarregado da bilheteria.

09/12/1909
Julio Llorente entrou para os escritórios da Companhia Cinematográfica Serrador, de Francisco Serrador. Começou pelo primeiro degrau a sua carreira e cada degrau seguinte que galgava, mais se consolidava o seu valor, tornando-se assim o orgulho de seu velho mestre Serrador, que, com o tempo, não hesitou em entregar-lhe a inteira direção de seus negócios em São Paulo, que em linha reta prosperaram, formando, para a época, uma grande corrente de cinemas.

1918
Fundou-se, em São Paulo, a famosa distribuidora de filmes, o Programa Serrador, também, dirigida por Julio Llorente.

1925/1926
Julio Llorente sugere (e Serrador concorda) que o Programa Serrador que, cada vez mais oferecia melhores filmes, tenha cinemas próprios para apresentar seus filmes: assim não dependeria de mais ninguém. Seguindo o plano traçado para isso é arrendado e remodelado o teatro Royal, situado na Rua Sebastião Pereira. A primeira base do plano do Julio estava feita. E, seguindo o que fora traçado, em 1926, Francisco Serrador e Llorente arrendaram o famoso Theatro Sant'ana, da Rua 24 de Maio.

1927
Surgem novos cinemas, engrandecendo de forma satisfatória o Circuito Serrador. Entre estes, o cine Capitólio, à Rua São Joaquim (que foi por muito tempo notável em São Paulo), o Braz-Polytheama e o Mafalda, no Brás.

1928
Mais um grande cinema para o Circuito Serrador, o monumental Odeon (na Rua da Consolação), com duas salas de exibições - Sala Vermelha e Sala Azul - totalizando 4530 poltronas. Nos altos do próprio Odeon teve a Empresa Serrador, com Julio Llorente à frente, o seu quartel-general.

1935
Fazendo concorrência a Julio Llorente surgiram, pelos anos de 1930 a 1934, duas novas empresas exibidoras, a Cine Brasil e a empresa de José B. de Andrade, com vários cinemas. O resultado da concorrência entre as três empresas surgiu afinal: o encarecimento dos filmes. A lei da oferta e da procura preponderou e disso quem tirava partido eram os distribuidores de filmes, cujas produções eram vendidas a quem melhor lance fizesse. Isso não era interessante para os três circuitos, sentindo-o menos o Serrador-Julio, que tinha filmes próprios. Resultado: na defesa de seus próprios interesses, os diretores dos três grupos reuniram-se para discutir o assunto, ponderando, sobretudo, quanto aos prejuízos que sofriam com a concorrência. Cartas na mesa! Julio Llorente, o bilheteiro do Bijou Theatre ganha a parada. Fica com todos os cinemas. Assim, ao final de 1935, Julio Llorente, praticamente senhor da praça, tinha às suas mãos os principais cinemas do centro e dos bairros.

1936
Surge um novo concorrente, um novo cinema, um dos melhores de São Paulo, o Ufa Palacio (depois, Art Palácio), o maior do Centro, de Ugo Sorrentino, distribuidor de filmes da Ufa de Berlim. Logo passou a fazer parte do Circuito Serrador, e foi Julio Llorente quem o inaugurou.

1943
Inaugurou dois gigantescos cinemas do Circuito Serrador: o Ipiranga (com 1936 lugares) e o Piratininga (com 4313 lugares).

1950
O grandioso cine Nacional, com 3300 lugares, é inaugurado em 27/03/1950, onde mais tarde sediou os escritórios centrais da Cia. Cinematográfica Serrador. A solenidade de inauguração iniciou-se com o descerramento de uma placa comemorativa (um "medalhão"), na sala de espera do cinema, homenageando Francisco Serrador. José Serrador, filho de Francisco Serrador, discursou agradecendo a homenagem prestada a seu pai.

José, filho de Francisco Serrador, discursa agradecendo a homenagem prestada a seu pai.

"Medalhão" em homenagem a Francisco Serrador

Entre Dna. Aida Llorente e Dr. Florentino Llorente, vemos José Serrador, filho de Francisco Serrador.


1951
É promulgada uma lei na Câmara Municipal de São Paulo dispondo sobre a obrigatoriedade das poltronas numeradas nos cinemas. Na época, Julio Llorente discorda e declara: "É evidente que a compra ou reserva antecipada de bilhetes numerados, duas, três ou mais vezes por semana, não pode ser feita pelo operário, comerciário, doméstica, bancário, etc., pois lhe falta tempo material para mais essa complicação em sua já complicada vida. Logo, as únicas pessoas que poderão auferir aquela vantagem, aparente, bem entendido, serão os abastados, os patrões, os chefes, os que dispõem do tempo de seus criados, empregados ou subalternos, em suma, de dinheiro para futilidades, seu ou dos outros".

1953
Sra. Aida Llorente, esposa de Julio Llorente, e sua filha Julia Quintino de Oliveira, organizam uma reunião beneficente com amigas, em prol das vitimas do então "flagelo nordestino".

1954
Julio Llorente é nomeado para o Conselho Consultivo do Sindicato das Empresas Exibidoras Cinematográficas, juntamente com Paulo Sá Pinto, Antonio Barone, Emilio Peduti, Américo Lucas e Esteves Junior.

1960
Inaugura uma nova e ótima sala exibidora no Centro - o cine Rio Branco - oferecendo com ela ao público paulistano, a última inovação do cinema: filmes de 70 milímetros.

1966
A família Llorente é homenageada nos salões do Nacional Clube pela então Fundação Cinemateca Brasileira e Sociedade Amigos da Cinemateca. Estiveram presentes o então prefeito Faria Lima, o programador de cinema Dante Ancona Lopes, o historiador Sérgio Buarque de Holanda, a escritora Lygia Fagundes Telles, entre outras personalidades. Toda família Llorente esteve presente: Julio e Aida Llorente; Florentino e Teresinha Llorente; Jaime e Lídia Llorente; Julinha Llorente e seus filhos Paulo e Caio. Reconhecimento à família, pela contribuição dada à cultura cinematográfica em São Paulo e pela destinação dos cines Picolino e Scala para exibições de filmes de arte, promovidas pela Cinemateca.

Em seu discurso de agradecimento, Julio falou um pouco sobre seu pai: "Meu saudoso pai, Florentino Llorente, mais conhecido por Florete nas rodas intelectuais de Madrid e Bilbao, faleceu aos 37 anos de idade, em 1901. Foi poeta, teatrólogo e homem de imprensa. Ainda conservo um de seus dramas, em versos, 'La Mancha Roja', estreado em 1896 em San Sebastian, a bela cidade dos atuais festivais de cinema, e manuscritos de outras peças de teatro como 'La Regata', 'Pedro Roncal' e 'Magdalena', que deixou inacabadas. Naturalmente, já estava eu inoculado do pequenino vírus que contamina todo homem de espetáculos. O vírus fixou-se e fiz do cinema e do espetáculo a razão de ser de minha vida".

1979
Conforme relato de seu neto Rodrigo Havier Llorente, Julio Llorente faleceu em novembro de 1979. Tinha deixado de trabalhar a apenas alguns meses, mas sentiu muito a perda de sua esposa Aida, anos antes.

Este texto será sempre atualizado a medida que chegarem novas informações sobre Julio Llorente.

Julio Llorente e esposa Aida, e família de José Burlamaqui na inauguração do novo cine Paulista, em 1955




Alguns teatros e cinemas administrados pela Cia. Cinematográfica Serrador em São Paulo:

1908 - Teatro Colombo e Cinematógrafo Paulista;
1909 - Smart Cinema e Ola Giratória;
1910 - Politheama e Chantecler Theatre;
1911 - Radium Cinema, Ideal Cinema e Iris Theatre;
1928 - Odeon;
1930 - Paratodos e Santa Cecília;
1934 - Broadway;
1936 - Ufa Palácio (depois Art Palácio);
1939 - Bandeirantes e Universo;
1942 - Brasil (em Pinheiros);
1943 - Ipiranga e Piratininga;
1947 - Majestic, CruzeiroEsmeralda;
1948 - Vogue;
1950 - Nacional e Candelária;
1952 - Joia, Anchieta, Paris, Roma e Cine Mar;
1953 - São Sebastião e Arlequim;
1954 - Liberdade;
1955 - Paulista (Novo), Marrocos e Picolino;
1956 - Trianon;
1957 - Paissandú, Astral, Fidalgo e Boulevard;
1958 - Coral e Centenário;
1960 - Rio Branco;
1961 - Valparaizo;
1967 - Premier, Festival e Center;
1968 - Novo Cometa;
1977 - Senador.

Julio Llorente e os primórdios do cinema em São Paulo

Por Antonio Ricardo Soriano.

Um pouco da vida de um jovem bilheteiro de cinema que passou a dirigir, em São Paulo, uma das maiores redes de cinemas da história da exibição cinematográfica brasileira: a Companhia Cinematográfica Serrador.

Clique em cada cinema para saber um pouco de sua história.

Julio Llorente e seu filho Florentino (seu "braço direito")


Segue, abaixo, parte de um belíssimo texto publicado no periódico Cine-Repórter, de 09/12/1959:

Fé intrépida, amor à luta, capacidade de trabalho, determinação, espírito criador - com estas armas conquistou todos os postos de uma carreira brilhante, projetou-se e tornou grande uma organização que São Paulo e o Brasil respeitam e admiram: a Companhia Cinematográfica Serrador.

Lá por 1908, São Paulo era a "terra da garoa", vivendo feliz com seus carros e tílburis. Nessa época contava com quatro teatros - o Politheama, o Eldorado (na então boêmia e estreita Rua São João, próximo à Líbero Badaró), o Moulin Rouge, no Largo do Paissandu (este com espetáculos de variedades) e o Sant'anna, ao fundo da Rua Boa Vista.

São Paulo foi então surpreendida com a estreia do cinema, e a casa escolhida para isso foi justamente o Sant'Anna, o teatro de elite paulistana, que só era ocupado por grandes companhias de óperas, operetas, dramas, comédias e revistas, na sua maior parte estrangeiras. Pois nessa famosa casa, onde Tina de Lorenzo, José Ricardo, Eduardo Brazão, Ermete Zacconi, Gustavo Salvini e outros artistas de renome brilharam, é que foi apresentado o "Cinema Richebourg" (cinema itinerante) pelo Sr. Francisco Serrador, procedente de Curitiba, e isso, como grande novidade para a Paulicéia.

A programação dos espetáculos era constituída de filmes de uma ou duas partes - comédias de Max Linder e Tontolini, dramas de arrepiar, naturais e reportagens da guerra russo-japonesa. A apresentação do "Cinema Richebourg" foi naquela época um grande acontecimento no gênero de diversões. O Teatro Sant'Anna tornava-se pequeno para acolher o grande número de espectadores que todas as noites se dirigiam para lá. Terminou a temporada cinematográfica (porque o teatro tinha compromissos com empresas teatrais) e Francisco Serrador fez um giro pelo interior do Estado mostrando a nova maravilha às plateias deslumbradas.

Entusiasmado, entretanto, com o êxito que alcançara na capital paulista, Francisco Serrador arrenda o teatrinho Eldorado, uma espécie de satélite do Politheama, que nessa ocasião era ocupado por uma Companhia de Fantoches (Cornie Dell'acqua). Manda reformá-lo completamente e, após essa operação, inaugura-o com o nome de Bijou Theatre (espaço destinado exclusivamente para exibições cinematográficas, isto é, o primeiro cinema de São Paulo). O teatrinho ficou mesmo um "bijou", com plateia, frisas, camarotes (para assentos, cadeiras de palhinha importadas da Áustria), e nele foi iniciada nova temporada de cinema. Continuava também aumentando o número de apreciadores do novo gênero de diversões.

O Bijou Theatre, entretanto, foi se tornando pequeno para comportar o grande público que para ali acorria todas as noites. Aí, então, entusiasmado e confiante no seu empreendimento, Francisco Serrador constrói, ao lado do Bijou Theatre, um novo cinema, o Bijou Salão, confortável e acolhedor, onde também foi apresentado, com êxito, o primeiro filme falado (com Claudina Montenegro e Santiago Pepe, irmão do popular Roulien, cantando atrás da tela o "Cheri-biri-bi" e outras canções, cada uma um filme). Mais tarde, como complemento da parte cinematográfica, a Companhia de Comédias do ator Pinho, que se constituiu num grande êxito, melhor credenciou o Bijou Salão.



Francisco Serrador não queria dormir sobre os louros conquistados e, assim, a fim de expandir o cinema por toda parte, abre uma distribuidora de filmes num velho casarão residencial da Rua Brigadeiro Tobias. Nesses escritórios, trabalhando com lealdade e carinho ao lado do boníssimo Serrador, encontravam-se, como chefes, subchefes e auxiliares os Sres. Cap. Antonio Gadotti (tesoureiro), Gustavo Zieglitz (remessista), Oscar Cabral de Vasconcelos (guarda-livros), José W. Thompson (correspondente), Carlos Salgado (gerente), Botelho (cinegrafista) e muitos outros.

A equipe estava completa, isto é, parecia estar completa, porquanto estava faltando um, faltava um funcionário que um dia deveria surgir para se tornar mais tarde figura exponencial da organização. Essa figura surgiu, como se esperava, na pessoa do jovem espanhol Julio Victor Llorente. Assim, quando da inauguração do Bijou Theatre, o mocinho Julio Llorente, auxiliar de escritório, foi o encarregado da bilheteria desse cinema. O simpático "bilheterinho" despertava a atenção e os olhares das mocinhas.

Julio Llorente entrou para os escritórios de Serrador justamente no dia 9 de dezembro de 1909. Começou pelo primeiro degrau a sua carreira e cada degrau seguinte que galgava, mais se consolidava o seu valor, tornando-se assim o orgulho de seu velho mestre Francisco Serrador, que, com o tempo, não hesitou em entregar-lhe a inteira direção de seus negócios em São Paulo, que em linha reta prosperaram, formando, para a época, uma grande corrente de cinemas.

No começo de 1918, Francisco Serrador transferiu-se para o Rio de Janeiro, a fim de cuidar de seu grande sonho: a criação da Cinelândia, o que realizou, merecendo por isso o tributo de, em praça pública, frente à sua obra monumental, ter o seu busto em bronze. Desligou-se da sociedade e dos cinemas que fundara em São Paulo e Julio Llorente continuou como alto funcionário dessa organização.

Serrador, no Rio, era ainda importador de filmes e queria distribuí-los em São Paulo, por entidade própria. Para essa segunda e nova organização Serrador em São Paulo, surgida em fins de 1918, a Companhia Cinematográfica Serrador, desde logo se apresentava como a maior distribuidora na época (os norte-americanos, então, ainda engatinhavam na distribuição de seus filmes) e necessitava encontrar um diretor capaz. Houve, naturalmente, vários candidatos, porém Serrador escolheu Julio Llorente, a quem, durante alguns anos, na Rua Brigadeiro Tobias, havia tido como auxiliar direto e exemplar. Fundou-se, assim, em São Paulo, a distribuidora famosa - Programa Serrador - à Rua Santa Ifigênia, 94. Começou, então, particularmente, para Julio, uma autentica "via crucis" para lançar em São Paulo a ótima programação Serrador, um excelente filme de metragem por semana, além de "shorts" (curtas), seriados, etc.

Em 1918 já se havia formado um "truste" de exibidores na cidade. Queriam os filmes de graça, isto é, a um conto de réis para 25 cinemas! Pouco mais do preço do frete de Rio a São Paulo... Os amigos da véspera boicotavam quem os havia ensinado o ofício. Serrador no Rio, Julio em São Paulo, na própria fogueira, disseram: NÃO! Que ficassem os filmes nas prateleiras, mas não os dariam de presente! Lá foi o Julio procurar um único cinema que lançasse o Programa Serrador, para lutar contra os 25. E o encontrou: o Cinema Congresso, dos irmãos Caruggi, na Praça João Mendes. Umas pinturas, uns adornos, palhinha nova nas 500 cadeiras e o "cinema poeira" ficou bonitinho. Era exibidor exclusivo do Programa Serrador. Grande êxito social e financeiro, a um mil réis a entrada! A elite paulistana enchia o Cine Congresso. O filme da luta de box Dempsey x Carpentier lá ficou durante 14 dias! Passaram-se dois anos felizes.

O "truste" assustado, "cantou" os "Caruggis" e... de novo o Programa Serrador ficou na rua, Julio Llorente, entrementes, substituiu o Congresso pelo Phenix, na Rua Domingos de Morais, isto é, até que aparecesse outro melhor. E esse apareceu, em 1920, uma excelente casa nova, à Rua General Osório - o Cinema Central - de Dona Julia Christianini, casa que foi inaugurada brilhantemente com o filme "Morrer Sorrindo", da Select Pictures, com Norma Talmadge, a grande estrela da época. Mas o "truste" não queria deixar o Julio em paz e arrenda o Central por preço exagerado e oferece a ele mais uns tostões pelas fitas... Nada feito! Julio Llorente é um espanhol revolucionário, diziam: "só quer brigar".

Surge então um rapaz culto e inteligente, J. Quadros Júnior. Com o apoio do Programa Serrador prepararia um magnífico cinema no Centro. Dito e feito. Assim, em 1921, surge o grandioso cine República, na Praça da República. Com isto Julio Llorente, a porcentagem, faturava a um só cinema de seis a sete contos de réis por filme, isto é, cinco ou seis vezes a mais da proposta do consórcio para 25 cinemas! Passaram-se três anos. Novas tempestades! O República capitula e adere às Empresas Cinematográficas Reunidas, uma colcha de retalhos, uma torre de Babel, com uma dúzia de empresários e outros tantos diretores.

Estamos em 1925. E nessa ocasião Julio Llorente sugere (e Serrador concorda) que o Programa Serrador que, cada vez mais oferecia melhores filmes, tenha cinemas próprios para apresentar seus filmes: assim não dependeria de mais ninguém. Seguindo o plano traçado para isso é arrendado e remodelado o teatro Royal, situado na Rua Sebastião Pereira. Além do Programa Serrador, vai para o remodelado Royal, a United Artists, uma nova produtora americana que o Sr. Enrique Baez trouxe para o Brasil, credenciada com magníficos filmes. Êxito invulgar! Mais outro revolucionário em cena, o Baez, segundo os concorrentes.

A primeira base do plano do Julio estava feita. E, seguindo o que fora traçado, em 1926, Francisco Serrador e Llorente arrendaram o famoso Theatro Sant'ana, da Rua 24 de Maio. Coincidência feliz, porquanto foi no outro Teatro Sant'anna, já demolido, que a Empresa Richebourg, de Serrador, começara sua longa carreira! Com a apresentação do filme "Em Busca do Ouro", de Charlie Chaplin, o teatro abre suas portas, então transformado em cinema. O Teatro Sant'ana tornou-se o cinema da elegância paulistana. Além dos grandes filmes que oferecia, ótimas atrações internacionais eram apresentadas no palco, com grandes orquestras. Entretanto, em 1927, surgem novos cinemas, engrandecendo de forma satisfatória o Circuito Serrador. Entre estes, o cine Capitólio, à Rua São Joaquim (que foi por muito tempo notável em São Paulo), o Braz-Polytheama e o Mafalda, no Brás.

Nesse mesmo ano, as Empresas Reunidas, que tanto combateram a Empresa Serrador e a Julio Llorente, não resistindo à luta, passaram todos os seus cinemas à Metro-Goldwyn-Mayer, chefiada por Benjamin Finenberg. A nova organização comprou todos os cinemas de São Paulo, isto é, menos o reduto inexpugnável de Serrador-Julio. Esse empreendimento, que se apresentou gigantesco, foi de pouca duração, porquanto não chegou a durar mais de um ano. A Metro, que perdera muito dinheiro, retirou-se do negócio, devolvendo os cinemas aos seus donos.

Em 1928 surge mais um grande peão no tabuleiro da Empresa Serrador, o monumental Odeon (na Rua da Consolação), com duas salas de exibições - Sala Vermelha e Sala Azul - totalizando 4530 poltronas. Seus imensos salões eram usados para festas, exposições e neles, durante 27 anos consecutivos, o Julio ofereceu aos foliões carnavalescos de São Paulo os maiores bailes de que há de memória! Nos altos do próprio Odeon teve a Empresa Serrador, com Julio Llorente à frente, o seu quartel-general durante 27 anos, isto é, até 1955.

Fazendo concorrência a Julio Llorente aparecem pelos anos de 1930 a 1934 duas novas empresas exibidoras: a Empresa Cine Brasil, com Manoel Ferreira Guimarães, Ary Lima, Benjamin Finenberg (que já havia construído o Paratodos) e J. Quadros Junior, o inventor do famoso cine República, em 1921. Tratava-se, portanto, de craques do ofício que se uniam. Contava essa nova empresa com os cinemas República (já em decadência), Royal, Paratodos, Rosário, Alhambra, Olympia e São Caetano. A outra nova empresa surgiu em 1934, com José B. de Andrade, notável homem de negócios, e Benjamin Finenberg, que se havia desligado da Empresa Cine Brasil, contando com excelentes cinemas para a época: Broadway, Paulista (o anterior ao mais recente), Babylônia e Lux e, em projeto, o Bandeirantes (inaugurado em 1939).

Estamos em 1935. O resultado da concorrência entre as três empresas surgiu afinal: o encarecimento dos filmes. a lei da oferta e da procura preponderou e disso quem tirava partido eram os distribuidores de filmes, cujas produções eram vendidas a quem melhor lance fizesse. Isso não era interessante para os três circuitos, sentindo-o menos o Serrador-Julio, que tinha filmes próprios. Resultado: na defesa de seus próprios interesses, os diretores dos três grupos reuniram-se para discutir o assunto, ponderando, sobretudo, quanto aos prejuízos que sofriam com a concorrência. Cartas na mesa! Julio Llorente, o bilheteiro do Bijou Theatre ganha a parada. Fica com todos os cinemas. E então explodiram os comentários: "Agora sim, eles se afundam!". Mas o Julinho tinha um anjo forte e nada aconteceu, a despeito dos prognósticos. Assim, ao final de 1935, Julio Llorente, praticamente senhor da praça, tinha às suas mãos os principais cinemas do centro e dos bairros, e por isso, não só o público paulistano, mas os próprios distribuidores de filmes nada tiveram a lamentar.

A luta, porém, não terminara e nem terminaria: surge em 1936 um novo concorrente, um novo cinema, um dos melhores de São Paulo, o Ufa Palacio (depois, Art Palácio), o maior do Centro, de Ugo Sorrentino, distribuidor de filmes da Ufa de Berlim. Mas, esta sala, como as outras, também passou a fazer parte do Circuito Serrador, e foi Julio Llorente quem a inaugurou.

Como dissemos acima, a luta não terminara e nem terminaria, Benjamin Fininberg, o grande plantador de cinemas em São Paulo, em sua última arrancada no ofício, surge novamente com ideias grandiosas: planeja a construção de quatro grandes cinemas, o Ipiranga, o Cruzeiro, o Brasil e o Piratininga. Isto ocorreu em 1942, quando o saudoso Francisco Serrador, a maior figura como jamais existiu na história do cinema no Brasil, já havia falecido. José Burlamaqui de Andrade, que já fora sócio de Finenberg no Broadway e outros cinemas, passa a fazer parte da nova organização. Nisto a vitória de Julio Llorente foi atômica. Venceu de entrada porque quando das inaugurações dos cinemas... eles já faziam parte do seu circuito! (Julio tinha o competente João Zeron como gerente-geral de seus cinemas).

Outro episódio: quando o cine Marrocos foi construído em 1951, seus proprietários preferiram outros locatários a Julio Llorente. Talvez não acreditassem nesse velho "fiteiro" (sem trocadilho). Como em 1951 não o deixaram entrar pela sala de visitas, no ano de 1955 ele entrou no Marrocos pela cozinha, e nele ficou cinco anos, o suficiente, incontestavelmente, para uma desforrazinha. A luta continuaria, e disso, apesar dos anos, Julio Llorente gostava.

Surge, então, o moço Paulo Sá Pinto, que veio de Porto Alegre e criou asas em São Paulo, graças ao seu grande amigo Racine Guimarães. Com Paulo Sá Pinto entram Lucidio Ceravolo, Oscar Herminio Ferreira, organizando um novo circuito com os cines Ritz (São João) (mais tarde Rivoli), Ritz (Consolação), Marabá, Olido e outras casas. Mas Julio Llorente não se intimida: em 1957, oferece à população, os cines Paissandú, Boulevard e, em 1960, uma nova e ótima sala exibidora no Centro - o cine Rio Branco - oferecendo com ela ao público paulistano, a última inovação do cinema: filmes de 70 milímetros. Após tudo isso, pequenos núcleos isolados de cinemas apareceram em São Paulo. Como "São Paulo não pode parar" outras organizações surgiram, porém, sem intranquilizar Julio Llorente, porque o homem, destituído de vaidades pessoais, lutou sempre e destemerosamente.

Havia outro lado precioso e terno da vida de Julio Llorente: a família, de que ele cuidava com carinho e desvelo, tendo a seu lado sua digníssima esposa, Aida Llorente. Desse casal vieram três filhos: Julia, Jaime e Florentino. Florentino (advogado) herdando as tendências cinematográficas paternas, aos poucos, vai ocupando o lugar de Julio Llorente na organização, isto é, nos negócios de relações públicas e comerciais (ele era o secretário-geral da companhia), porquanto, o que é muito natural, o veterano cinematografista, objeto destas linhas, já era homem de gabinete, já era o homem das consultas e dos pareceres nos altos assuntos da companhia.

Em pequenos episódios ou detalhes delineamos despretensiosamente a vida cinematográfica de Julio Llorente, porquanto, para contar integralmente essa vida exemplar, seria necessária a edição de um precioso livro para o arquivo da história cinematográfica paulista e - porque não dizer? - brasileira. Deus o ajudou e abençoou o seu trabalho digno e honesto e, por isso mesmo, o premiou com o seu filho Dr. Florentino Llorente, que brilhantemente desempenhou o cargo de seu assistente e prosseguiu numa linha de empreendimentos e realizações fecundas.

Julio Llorente homenageado pela Cinemateca Brasileira em janeiro de 1966




*
Conforme relato de seu neto Rodrigo Havier Llorente, Julio Llorente faleceu em novembro de 1979. Tinha deixado de trabalhar a apenas alguns meses, mas sentiu muito a perda de sua esposa Aida, anos antes. 

"Tenho muito orgulho de meu avô Julio, que num certo dia de seu aniversário, resumiu o que sentia por tudo a sua volta, parafraseando trecho da música de Violeta Parra 'gracias a la vida, que me ha dado tanto'. Ele teve tudo que quis, trabalho, uma esposa que tratou com muito amor e uma família sempre unida. Fez por merecer! Saudades". - Rodrigo Havier Llorente 

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BIBLIOGRAFIA DO SITE

PRINCIPAIS FONTES DE PESQUISA

1. Arquivos institucionais e privados

Bibliotecas da Cinemateca Brasileira, FAAP - Fundação Armando Alvares Penteado e Faculdade de Arquitetura e Urbanismo - Mackenzie.

2. Principais publicações

Acervo digital dos jornais Correio de São Paulo, Correio Paulistano, O Estado de S.Paulo e Folha de S.Paulo.

Acervo digital dos periódicos A Cigarra, Cine-Reporter e Cinearte.

Site Arquivo Histórico de São Paulo - Inventário dos Espaços de Sociabilidade Cinematográfica na Cidade de São Paulo: 1895-1929, de José Inácio de Melo Souza.

Periódico Acrópole (1938 a 1971)

Livro Salões, Circos e Cinemas de São Paulo, de Vicente de Paula Araújo - Ed. Perspectiva - 1981

Livro Salas de Cinema em São Paulo, de Inimá Simões - PW/Secretaria Municipal de Cultura/Secretaria de Estado da Cultura - 1990

Site Novo Milênio, de Santos - SP
www.novomilenio.inf.br/santos

FONTES DE IMAGEM

Periódico Acrópole - Fotógrafos: José Moscardi, Leon Liberman, P. C. Scheier e Zanella.

Fotos exclusivas com publicação autorizada no site dos acervos particulares de Joel La Laina Sene, Caio Quintino,
Luiz Carlos Pereira da Silva e Ivany Cury.

PRINCIPAIS COLABORADORES

Luiz Carlos Pereira da Silva e João Luiz Vieira.

OUTRAS FONTES: INDICADAS NAS POSTAGENS.